Entrevistas


A última entrevista de Guimarães Rosa

Uma preciosidade histórica da língua portuguesa: a entrevista realizada pelo escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Guimarães Rosa morreria menos de um ano depois de tê-la concedido




Eis o homem. O homem que em menos de 20 anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cf. alguns prêmios Nobel), conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo, não?

Repara no corpo: mau grado as ligeiras ameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, que da língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo, aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão do Itamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentam iludir a mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar o primeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, não precisa ter pressa nem pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.

Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Ita­­bira de Drum­mond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de con­tar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, já ele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses... 
"Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Ham­­burgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra".
Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?

Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumas amizades. Gosto mui­to do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Gui­marães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.
Mas não chegou a conhecer Aquilino?

Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi al­guns livros dele, o empregado per­guntou-me se eu queria co­nhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.
Não sabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os "notáveis escritores e poetas" que estavam a "encostar a pena contra a lava" que ia no Brasil "sepultando prosódia e morfologia da língua-mater"? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal...

Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira.
Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino.

Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, co­mo infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937.
Um garçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses?

Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.
Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Gui­marães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado ne­nhum livro de ca­valaria, nem ne­nhuma novela bu­cólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Gran­de Sertão: Veredas”...

Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Ber­nardim (Bernardim Ri­beiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Ca­milo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal...
... que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” - e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso - pelo campo da “invenção linguística?

Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um ca­derninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu tradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo:  “gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Cor­po de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção...”.
Nota: Entrevista realizada pelo escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.








INTERVIEWS

An Interview With Doug Rice by David Hoenigman


Doug Rice
Doug Rice’s newest work is Between Appear and Disappear, a hybrid text of photographs, poetry, fiction, memoir and philosophy being published by Jaded Ibis Productions (February 2012). Dream Memoirs of a Fabulist, another hybrid text of memoir, gender theory, aphorisms and photographs, is being published by Copilot Press (July 2011). His first novel,Blood of Mugwump: A Tiresian Tale of Incest, was published by Fiction Collective 2 and was selected as runner-up for the FC2 First Novel Award, judged by Kathy Acker. He has also published two collections of short fictions A Good Cuntboy is Hard to Find and Skin Prayer: fragments of abject memory. He was one of the co-editors for Federman: A to X-X-X-X. His work has been translated into Polish, French and Spanish. He is founder and director of Nobodaddies Press.
His work has also appeared in numerous anthologies and journals includingDiscourse, Avant-Pop: Fiction for a Daydream Nation, Gargoyle, Zyzzyva, Kiss the Sky, Alice Redux, Fiction International, Journal of Experimental Literatureand Plazm.
He has just been awarded an arts residency at Akademie Schloss Solitude in Stuttgart. He teaches literary and film theory and history and creative writing at Sacramento State University.
What projects are you currently working on?
I am writing a new novel, a traditional novel. My old teacher John Gardner will finally be proud of me. These are stories from the streets and steel mills of Pittsburgh, my home, my flesh. I am writing this book because one day I simply saw an image of two men standing on my grandmother’s porch, drinking beer and talking. A nervous woman pacing around in the house. And a child, a missing child. So I am writing this novel in order to find out what happened to that child. And each characters’ voice is filled with so much history, so much Pittsburgh. I am writing this book in Pittsburgh, not English.
And I am working on a grammar handbook for rivers. I am trying to understand something about time (fueled by the Sufi philosophies and the flow of the South Fork of the American River) and the sentence as written in water. So I am playing with the grammar and syntax of rivers.
And desire. Longing and stillness. My partner and I are working on this through photography and texts. She is cutting into time with her camera. We are mingling our perceptions. I am not sure where this may go.
When and why did you begin writing?
You mean putting a pen on a piece of paper or do you mean listening? I mean really listening the way a child tends to his playing. I listened to my maternal grandma ever since I was a young boy. Her stories fascinated me because they just wandered around, ignoring all sense of the sentence and of stopping. That beautiful woman taught me more about exploding sentences and narratives than Faulkner did. She just did it in the telling. So I guess I started remembering when she started telling me these stories and that started me writing. And I just kept getting them all wrong. So I started young because I was painfully bored by what capitalism offered up by ways of storytelling and my grandma could tell a story in ways that fascinated me.
Later, Kathy Acker and I used to talk about why we started telling stories and it always came down to the simple desire to entertain ourselves.
When did you first consider yourself a writer?
I never considered myself a writer and I do not consider myself a writer. That is a noun, a finished persona. I write. So when I am writing a sentence, I guess I am a writer. This may sound silly but it matters to me. There are bunches walking around with all kinds of certificates and degrees that certify they are writers. They go to universities and someone bestows the label “writer” on them. Maybe instead of diplomas that say they are writers, we should give them tattoos when they complete their programming. That way any time they are in a coffeehouse they can always roll up their sleeves (if they know how to do this) and say: “See, I’m a writer.” Remember that scene in Cronenberg’s Naked Lunch when William Lee is crossing the border and the border patrol asks him his profession and he says: “I’m a writer.” And he reaches in his pocket and pulls out a pen and says: “See. I have a writing utensil.” They ask him to prove it. “Write something.” That makes sense to me.
What inspired you to write your first book?
Confusion. Uncertainty. Unknowing. Fear. More than anything what inspires me to write anything is the fear that if I do not write these stories they will not be written, they will simply disappear. People will be erased. Springsteen discusses this when he talks about writing all those stories about people from Jersey. All those working class people. When I submitted my writing to my undergraduate creative writing teachers, I was told: “Why are you writing about these kinds of people? No one cares about them.” I told my teachers I cared and that that was enough. Back then I was writing the stories that would form the heart of Blood of Mugwump. There were stories of gender confusion and sexualities that were more complex than the categories we have available. So I was exploring bodies and characters with desires that unnerved language and narrative. It was in part out of my own confusion about sexual identity and memory. The relationship between memory and body.
But also think of this notion of being inspired. I work so I really do not have time to be inspired in some sort of Romantic way.
Who or what has influenced your writing?
What doesn’t? Who doesn’t? Growing up storytelling on the very local level—in the family. I think the dinner table is where most writers are deeply influenced in terms of narrative structure and rhythms. So much has influenced me that this list would be long, very long. Those influences that are most central to my writing I am unaware of. Others have pointed them out to me and once they are pointed out I think oh, I see that now but I did not see or experience the influence while I was writing. Still whatever we put into ourselves is bound to influence. Certainly Faulkner, Irigaray, Cixous, Wideman, Springsteen, Derrida, Toufic, Godard, Sally Potter, Derek Jarman, Francesca Woodman, Lorna Simpson, Nancy Spero, Cha, Djuna Barnes, Maso, Trinh T. Minh-ha, Deleuze, Severo Sarduy
How has your environment/upbringing colored your writing?
I am Pittsburgh. Translators have commented on that because of the difficulty of translating the syntax and the diction. So the city and people of Pittsburgh are all through my writing. I think I suffer from this intense longing to be home and Pittsburgh is always home. You carry that city with you. And rivers. One of the reasons I thought I could move to Sacramento was because Sacramento, like Pittsburgh, has rivers around it. Different rivers and these rivers here, especially the south fork of the American River, has influenced the rhythms of my sentences. In Pittsburgh I rode buses everywhere because I did not have a license to drive. I only started driving a few years ago. So the shape and movement of my sentences were different when I was mostly a bus rider and a city streetwalker. Now I drive and I hike. Different movements. Different breath. From Benjamin’s/Baudelaire’s modernist flaneur to some sort of Muir/Lopez hiker.
Do you have a specific writing style?
As Deleuze has said, style emerges from the writing. And as Gass says there are no experimental writers, only writers pushed to some edge, to some precipice or up against a wall and given the alternative to be silent or to find a way to speak. So I do not have an intentional style. Everyone says I am Faulknerian but that is to simplify it and to not see Irigaray’s deep influence. So stylistically my sentences are governed by breath and sound not by grammar. I am more of a poet than a prose writer.
What genre are you most comfortable writing?
I find genres despicable in many ways—every genre from historical romance to the genre of MFA induced writing to what passes as experimental writing or hybrid writing. Any writing with that kind of intention from the outset bores me. I write with an intensity, not an intention. Joyce told Proust he writes writing. So maybe that is what I do. I know I am a prose writer. Pound told me that. I mean I do write to the margin, so I’m no poet.
My two newest books coming out soon are examples of this. Dream Memoirs of a Fabulist is being published by copilot press. In large part I did not even know it was a book. And it is not really being published, it is being collaborated. The publisher and designer, Stephanie Sauer, has infused this book with more layers of meaning by her page design. So I feel she “collaborated” the book, not published it. The book itself has words, mostly written into sentences, and photographs, mostly of dreams. None of the photographs are real. All of them reveal secrets that hide other secrets. And each sentence is a disturbance on the page. A mark. A trace. Forgotten. The writing unnerves itself. The writing wonders, wanders. Letters become litters after all. But the narrative desires to tell this true story.
The other book, Between Appear and Disappear, being published by Jaded Ibis, is not a book. It never was nor was meant to be. It is a gift. I simply started writing a gift. I did not see it as something that would be published so much as simply something that would be given as a forgetting. (I had turned and continue to turn away from publishing because of all that is going on in publishing….) But finding a publisher and a designer such as Debra Di Blasi changed that because again I see this more as a collaboration not a publication. The intimacy that Debra and Stephanie bring to my work, because I know their hands are touching my writing, I trust them. Because as much as anything else, books should be caressed while being read. Because the night…this moment of intimate perception and touch. A book should do that while whispering. Skin. Saliva. Lips. The strong tongue moving. Wanting. If a book becomes longing. I feel Debra and Stephanie make such books into desires.
So a book is a physical object in our hands and we should feel this, experience the book. Words have weight. Weigh on our tongues. A book should be experienced in more than one way and the reading experience should be visceral.
Is there a message in your work that you want readers to grasp?
You tell me. I mean my work speaks back to me, sometimes against me. I listen. I follow. The following is writing. (And all that that tries to mean.) But I do not so much know the meaning of my work. I am only seeing when I write. So readers need to learn how to see. Why do we, as a culture, think that seeing is natural, that we all know how to see? And I think my writing forces readers to slow down and learn patience. Perhaps my writing is a secret about a secret. Writers, artists, see things that others often overlook. If you see what I mean. If there is any message it is to find new ways of perception.
What book are you reading now?
I just finished re-reading Junot Diaz and some of John Gardner. Carole Maso’s Aureole and looking at Patti Smith’s photos and books of Ana Mendieta. And Gertrude Stein’s How to Write.
Are there any new authors that have grasped your interest?
Peter Grandbois. His new book Nahoonkara is wonderful. I just read Rachel Gontijo Araujo’s Pornapocalipse vol. 1 and was astonished by the language, the shapes of the sentences. Renee Gladman (ok, I know she may not be new but every time I read her she is new.) Anna Joy Springer just kicks my ass. Jalal Toufic (but again probably not so much new).
Any memories of particular works: the writing of, feedback, the thought behind…etc.
I remember seeing Bunuel’s Belle de Jour and thinking he knows things the rest of us cannot even dream. I remember throwing a copy of Faulkner’s Sound and the Fury against the wall of my basement because I was too young to know that each sentence takes patience. I remember John Gardner pointing to a sentence in a story I had written and saying: “That must have been an easy sentence to write.” I remember reading Anne Carson’s Nox and thinking, thank you. I remember once (maybe twice) in the middle of writing a sentence thinking there must be some way out of here. I remember once listening to a David Lynch film (I can’t remember which one, they all appear to sound the same) then writing a poem that only a few could understand. (I was not among the few.) I remember a nun taking a special interest in me. I remember my last conversation with Kathy Acker and both of us agreeing to write happy books because we wanted to put an end once and for all to trauma. I remember one of my college creative writing professors telling me to do anything with my life but promise not to write poetry. I remember this one book that I cannot read. I remember Ron Sukenick saying to me that I could not start a novel that way. I remember thinking, “Well, that changes everything,” but I can’t remember what book I was reading, what film I was watching, what song I was listening to, or what sentence I was writing. I remember standing beside Raymond Federman in his backyard in Buffalo in the snow, stoned and pissing, and Federman saying: “This is the end of the I.” And so it goes. Take it or leave it.







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Entrevistas de Sheila Leirner com Jean Baudrillard para o jornal O Estado de São Paulo em 1997 e 1999


Aos 69 anos (em 1997), Jean Baudrillard. é um dos escritores mais radicais da França, o que lhe vale a desconfiança e, não raro, o ódio da parte "politicamente correta, mas, muitas vezes, intelectualmente obtusa" dos meios acadêmicos e artísticos da França. Agora chega às livrarias francesas sua obra mais recente, Écran Total, já conhecida dos brasileiros. O livro, cuja versão em português foi lançada com o título Tela Total - Mito-Ironias da Era do Virtual e da Imagem, reúne artigos de Baudrillard publicados no Libération entre 1993 e 1997. Autor de cerca de 40 obras, nesta entrevista ele fala, entre outras coisas do seu mais recente livro de entrevistas, Le Paroxyste Indifferent, em que se define "à imagem do nosso mundo", "nem fanático, nem proselitista, nem exorcista". Possui "apenas a violência do paroxismo e o charme discreto da indiferença - justo balanço entre os extremos, exatamente lá, nos confins da indiferença, onde brilha ainda um vislumbre de desespero".


***


Sheila Leirner - Hoje nós vamos falar, entre outras coisas,das últimas polêmicas sobre a arte contemporânea, desencadeadas pelo seu artigo O Complô da Arte, publicado no jornal Libération, de sua "performance" em Las Vegas, dos mal-entendidos em torno de suas idéias que estão lhe chateando, e das críticas que você tem sofrido por ter publicado um artigo em Krisis, uma revista de extrema direita. Vamos falar também do seu último livro " O Paroxista Indiferente"  ; e... também do fato que você não quer aparecer hoje à noite no programa de Guillaume Durand, no LCI (o canal de informações da TF1)...
Jean Baudrillard - O-lá-lá... (Risos) Não sei se estou em boa forma. Hoje minha cabeça está um pouco confusa...


S.L. - Em nossas outras entrevistas você disse a mesma coisa, e sempre soube expor com muita clareza os seus pensamentos...


J.B. - O que você quer perguntar?


S.L.- Penso que você concorda que é um dos pensadores mais mal compreendidos aqui na França. Ultimamente os jornais e revistas andam cheios de protestos contra as suas posições, e na maior parte das vezes não se responde ao que você diz, mas ao que se tem vontade de polemizar. Em outros países você sente a mesma incompreensão?


J.B. - Em outros lugares me compreendem melhor no sentido em que aceitam... quer dizer, há muitos malentendidos também, mas não no sentido da incompreensão. Em toda parte a disponibilidade é muito maior, não existe esta espécie de muro, de bloqueio, de resistência, e mesmo este preconceito desfavorável, que vem crescendo no decorrer do tempo. Pois aqui não era assim antes, agora isso toma uma forma...não quero ser paranóico, mas há de todo modo uma forma de cristalização, de conjuração, sobretudo nos últimos tempos... Nos outros países as coisas não se passam assim porque ninguém participa desta espécie de atmosfera de moralização intelectual daqui, e desta hipocrisia. Quer dizer, não se trata de uma grande hipocrisia, mas de um cinismo ordinário, racismo ou fascismo comum. A hipocrisia aqui não tem o sentido da duplicidade ou da libertinagem, porque se fosse isso seria ótimo…


S.L. – Estamos generalizando, mas este é, de fato, um fenômeno francês: reacionarismo, incapacidade de prospecção, falta de generosidade e mesmo de inteligência. E no Brasil, como você se sente?


J.B. - O que eu gosto nos outros países, é que as pessoas não tem a mesma duplicidade com relação a você . Eles podem não estar de acordo, mas isso é normal. Existe uma abertura… No Brasil, então, é quase que bom demais, pois os preconceitos são favoráveis (risos). Ali há pequenos malentendidos também, mas no sentido positivo. Não só no Brasil, mas em outros países, há uma coisa um pouco mítica, você acaba como a encarnação do pós-moderno, do virtual, de coisas bem classificadas como estas…


S.L. – Mas tudo isso é um pouco verdade, não é ?


J.B. – É verdade. Porém, você vira uma espécie de ícone… há uma sacralização, e isso também é uma coisa bem brasileira, a dimensão mediática é muito forte…

S.L. – Talvez tenhamos uma visão mais prospectiva do que a França…



J.B. - Sim, sim, é isso. Vocês me vêem principalmente como um ente de ficção científica ! (risos) O fato é que nesses países há sempre o benefício diferencial que você tem por ser estrangeiro. Eu pessoalmente gosto muito de vir de fora e também aprecio muito as coisas que vem de fora, de modo que isso funciona ! Mas no universo francês, se você vem do exterior, isso é mal visto…


S.L. – Penso que no Brasil, as pessoas reconhecem também os seus próprios valores, o que não acontece aqui. Como você me disse na última entrevista, aqui é preciso morrer antes…


J.B. – Sim. No Brasil, existe uma disposição intelectual e humana mais generosa, uma curiosidade, um respeito.


S.L. – E um certo " relax" … ninguém tem medo de parecer ridículo. Você é mal visto na França também por causa da sua coragem de se expor, e trair as expectativas das pessoas, desafiando a chamada "inteligência políticamente correta", que é tensa demais ! Tomemos as coisas desde o início: ninguém lhe perdoou, por exemplo, quando você disse que a Guerra do Golfo não existiu...


J.B. – O início da polêmica, pode-se dizer se for preciso, remonta à "Esquecer Foucault". Houveram várias fases... depois teve a " Esquerda divina ", que foi a fratura política. Em seguida, a " Guerra do Golfo " e agora o "Complô da Arte" . No final, foram quatro etapas no calvário... (risos). Quer dizer que, a cada vez, teve uma espécie de opção positiva de público e uma recaída – é como se eu tivesse feito de propósito…


S.L. – No meio dessa onda negativa atual " provocada por você" , eu vi há pouco numa livraria uma publicação francesa que me pareceu altamente apologética do seu trabalho : " Não esquecer Baudrillard" .


J.B. – Sim, mas esta é uma pequena iniciativa de um colóquio que aconteceu em Grenoble, há dois anos. Muito provinciano… aliás, eles publicaram o título de forma tão minúscula e invisível, que é como se Baudrillard tivesse sido realmente esquecido… (risos) É isso que é bom…


S.L. – Mas é um livro elogioso…


J.B. – É, tem alguns textos interessantes, mas, o livro em si, não possui nenhuma importância. Não muda a imagem… Não vale nada contra esta intoxicação adversa que é a da " denúncia" …


S.L. – Você que foi crucificado quatro vezes depois de " Esquecer Foucault" , não pensa que isso também é uma boa estratégia para " não esquecer Baudrillard "  ?


J.B. – (Risos) Ah ! Crucificado, sim ! Depois as coisas se ajustam, há outras que acontecem, tudo isso se passa como uma trajetória com dimensões definidas, como se fossem ondas… não se trata de estratégia. Depois de " Esquecer Foucault" , teve o episódio da " esquerda divina" , o que eu escrevi sobre o socialismo e o poder, etc, etc. Ali eu fui alienado… e teve também a pequena história da " sedução" do lado do feminismo, mas isso não foi grande coisa !(risos) Com a " esquerda divina" eu mexi com todo o meio político. A partir daí é que comecei a ser estigmatizado como "  suspeito " , politicamente, de não estar realmente à esquerda, como se deve estar. E isso ficou, a imagem está feita…


S.L. – Com a " Guerra do Golfo" e também com " A Ilusão do Fim" , você trata do mesmo crime : o assassínio da realidade e a exterminação de uma ilusão – a ilusão vital, radical, do mundo, pela hiper-realidade. As suas proposições sobre a realidade também são inaceitáveis e politicamente incorretas no sistema de valores realistas.


J.B. – Isso tudo foi um verdadeiro escândalo. No momento em que você toca… bem, os meus livros são muito metafísicos, muito voadores, mas quando você nomeia um pouco as coisas : Foucault, a esquerda, o socialismo, a guerra, a arte ; aí você entra no domínio dos grupos, das máfias, das igrejinhas, e como eu ando sempre ao contrário do convencional… Enquanto eu escrevo livros como a " Transparência do Mal" ou " O Crime Perfeito" , onde há coisas muito mais duras, isto não é levado a sério.


S.L. – Durante o ano em que você estava escrevendo sistemáticamente para o " Libération" , isso ficou claro, não ?


J.B. – E como ! Quando eu escrevia sobre o virtual, o visual, o viral, as pessoas apreciavam e não havia problema nenhum. No entanto, se tocasse em Mitterrand, o presidente, ou na arte, aí eu levantava imediatamente uma espécie de escândalo.


S.L. – Era porque você estava entrando no domínio de especialistas ?


J.B. – Não é isso, pois quando eu escrevia sobre economia, os profissionais jamais reagiam… Para eles, eu não faço parte da corporação e a minha palavra não tem nenhuma espécie de importância. Contudo, se você cai naquilo que é da atualidade política ou artística, você entra no " campo" e é fuzilado.


S.L. – Supõe-se, então, provavelmente, que você deve estar dentro destes meios ?


J.B. – Que eu devo estar, ou que eu estive. A opinião é o quê ? São os críticos, os jornalistas, os intelectuais. A " opinião" quer que você tenha um discurso radical. Isto não é um problema, ao contrário. Ela te admira por causa disto. A " opinião" ama os discursos radicais ! Porém, você não deve cair na realidade, não devem haver conseqüências, está proibido descer ao jogo atual das coisas…


S.L. – A " opinião" têm medo ?


J.B. – Sim. Eles vivem num duplo nível. O nível imaginário radical, onde eles admiram Artaud, Nietsche, Céline, Duchamp, todos aqueles que estão além do bem e do mal, sem nenhum preconceito moral. É muito bom como exercício de admiração, mas eles não levam em conta, de jeito nenhum, as pessoas no plano real, quer dizer " real" entre aspas. Então há uma dupla moral : podemos ser imoralistas no plano imaginário, mas na realidade temos que ser morais, politicamente corretos, estar do bom lado, etc. Se, de alguma forma, você quiser juntar as coisas, aí, você é um mau elemento…


S.L. – A seu ver, estas reações moralistas são viscerais ?


J.B. – São viscerais no sentido em que são socialmente enraizadas. Esta " inteligência" está nas instituições, no sistema, na rede. Isso conta, é a realidade dela. E ela não quer perder os seus lucros. Há os que evoluem dentro disso com muita habilidade. Alguém como Phillipe Sollers, que na cabeça é um libertário, imoralista etc, sabe muito bem encontrar uma tática de acomodação. Eu que não sou diplomata, efetivamente, consigo me alienar quase por completo…


S.L. – É. Realmente a sua atuação não tem nada de diplomática ou de ajustada, bem ao contrário. Quando você apareceu com o blaser de lamê em Las Vegas, o " Canard Enchaîné" teve a " bondade" de lhe colocar ao lado de Johnny Halliday…


J.B. – Isso foi copia do Village Voice de Nova York. O Le Monde publicou uma matéria séria sobre o assunto, pois o evento tratava de um tema, o " destino" , a " sorte" … A questão da Guerra do Golfo é mais interessante, porque havia pessoas que estavam contra ou a favor, e para mim não era nada disso. O que eu colocava em questão, não eram as opções morais ou políticas, mas a realidade da Guerra. Aí eu tive todo mundo contra mim.


S.L. – Como você disse na época, a Guerra do Golfo, tal como ela chegou a nós, era o " assassinato daquela realidade" pela híper realidade das milhares de telas de TV, onde a realidade expulsava a realidade… Você era o observador, anti-diplomáticamente, neutro, mas as pessoas estavam indignadas demais, envolvidas demais, para entender isso.


J.B. - Exatamente. A questão não era de estar contra ou a favor da Guerra e sim de estar contra ou a favor da realidade da Guerra, da superstição da realidade das coisas. As pessoas reconheciam que a Guerra existiu virtualmente, mas não aceitavam que se pudesse criticar a sua realidade, pois se sentiam visadas na defesa de sua quota de realidade. Ninguém mudará nada na realidade das coisas, se não se compreender o conceito de realidade. É uma proposição filosófica, mas foi tomada completamente por uma coisa imoral !


S.L. – Há pouco tempo, na recente manifestação popular contra as leis de imigração aqui na França, que teve o apoio de todos os intelectuais e artistas, você me perguntou se eu tinha assinado o manifesto com ar de quem achava tudo aquilo um absurdo…


J.B. – E era. Inútil. Tudo funcionava como uma auto-justificação de solidariedade. Eu não queria participar deste falso testemunho que é uma forma de diagnóstico de impotência. Eu tomo sempre o exemplo do tribunal de Haia, que é um tribunal de guerra que julgou e condenou os servos. Naquele momento havia uma petição de intelectuais que reclamavam a aplicação do julgamento deste tribunal. Eu não ia assinar uma petição como essa ! O tribunal de Haia já é um sinal da impotência ocidental em alcançar a paz no bom sentido do termo. Não se pode fazer as coisas no terreno, então se cria um tribunal. Ele dá um veredicto que é inaplicável. Então vêem os intelectuais para exigir que o tribunal execute esse veredicto. Eu não sei porque eu entraria num processo inútil como esse , que não serve senão para salvar a boa consciência desses valores ocidentais, dos quais, aliás, eu não partilho.Mas isso é uma outra historia…


S.L. – Então porque você não explica melhor a sua posição – que está fora do bem e do mal - a essas pessoas que não o entendem? Porquê você recusou a ir hoje ao programa do Guillaume Durand na TF1 , canal de informações daqui?


J.B. – Eu já disse tudo… Esse tipo de coisa não serve senão para aprofundar a sua culpa… Só presta como argumento negativo aos outros. E eu não tenho vontade, pois é preciso entrar, de todo modo, numa análise mais sutil, fazer as pessoas passarem um pouco para o outro lado, e elas não tem a mínima vontade de se deslocar, tem um universo bem distribuído : ou você está do bom lado das vítimas, ou não está. Ou você está bem à esquerda, ou você não está. Ou você está do lado da realidade e da miséria, ou você não está. Não sei… não há nada a fazer ali… . Eu já tentei, mas como não sou masoquista não vou entrar mais nessa…


S.L. – Na questão do artigo " O Complô da Arte" , publicado há um ano no Libération, onde você constata a " nulidade"   da arte contemporânea (o que provoca polêmicas até agora), você também deixou este espaço vazio às explicações. Quantas pessoas lhe pediram para dar continuidade ao seu pensamento e desenvolver melhor o que dizia ! A mim, pessoalmente, isso parece uma necessidade… inclusive contra a injustiça das " denúncias" das quais você fala no início.


J.B. – Sim, mas, você sabe, o artigo foi o que ele foi. Eu o quis provocador, isso faz parte do jogo. A provocação você não explica. É um golpe. Você tem vontade de entrar no campo de um modo brutal…


S.L. – Mas isso é frustrante…


J.B. - É frustrante justamente para aqueles que estão na profissão, para os críticos. Mas é uma espécie de consideração em bloco – brutal, é verdade – que procura sacudir, simplesmente, a situação e fazer com que se passe a uma outra coisa… O artigo não foi feito para explicar. Porém, há muita coisa ali, e nas entrevistas que saíram depois, que as pessoas não leram e não quiseram ler.


S.L. – Há também muita coisa que não foi lida no artigo que você publicou na revista " Krisis" , considerada como de extrema direita, o que o colocou numa situação delicada no meio artístico francês. Como você falou da  nulidade da arte contemporânea, diz-se que você teria sido recuperado, como se previa, pelos reacionários.
J.B. – Este artigo foi escrito muito antes do " complô" , e trata de arte, cinema, e tudo mais. Mas isso, ninguém discutiu. Ninguém leu. Tomou-se o suporte como pretexto para não discutir o fundo. As pessoas só querem acertar contas.


S.L. – E depois colocaram você ao lado de Jean Clair e de outros, como se você corroborasse as idéias reacionárias deles…


J.B. - Na verdade, fizeram vários tipos de misturas : primeiro, o fato de me confundir com os curadores de arte. Depois, o que foi mais determinante : de um lado você tem o problema da arte, nulidade ou não, isso se discute. De outro lado, há a questão política, da extrema direita atualmente, etc. A confusão deles foi a de transportar o problema estético à ideologia política, e de dizer que se eu coloco a arte contemporânea em questão, é porque sou de extrema direita. Com esta colagem, eles anularam toda a problemática. Isso é o que é o pior. São práticas intelectuais ignóbeis, verdadeiramente fascistas.


S.L. – E como é que fica a sua neutralidade intelectual face a problemas reais como a ascensão da extrema direita de um Le Pen, por exemplo ?


J.B. – Eu não faço parte de nenhum lado. A esquerda não sabe como tomar posição contra Le Pen, ou a situação política. Não tem nenhuma estratégia eficaz, nada. Eles também não sabem como resolver o problema gravíssimo do lado da arte – não há alternativas, não há perspectivas, nada. Dos dois lados eles estão impotentes. Então, o que encontraram como solução, foi colar os dois, e resolver um pelo outro. Você compreende ? Se arte está em questão, é porque foi posta ali por pessoas da extrema direita ! E vice-versa ! Trata-se de terrorismo, de uma operação de chantagem. E se há duas coisas que eu não suporto, são a chantagem e o arrependimento. Se eles esperam que eu vá me arrepender, certamente não. E se eles esperam que eu vá " chanter" também nunca! A chantagem e o arrependimento são as duas tetas da obscenidade intelectual.


S.L. – O que me surpreende é que você nunca esteve, nem pretendeu, estar " dentro " da arte. Apesar de ser um artista, digo, um fotografo e um criador – pois inventa idéias e imagens - você sempre foi um marginal, no bom sentido de quem se afasta para ver melhor. Querem que você seja um outro !


J.B. – No problema específico da arte, que hoje está difícil de isolar, pois foi misturado com a política, eu não tenho solução. Talvez um dia eu poderei intervir, mas não será para esclarecer a situação. Veja bem, existe um mal-entendido. Não tenho nada a ver com os artistas, não tenho nada a ver com o objeto de arte, tenho a ver com a arte como objeto. É o objeto da arte que eu coloco em questão. Não é o objeto de arte, não é o que é bom ou o que é ruim, se a arte deve ser de vanguarda ou figurativa… Não é o meu problema. É assunto de Jean Clair e de outros. No interior do campo estético, isso eles tem direito de expor e os artistas de tomar partido, mas eu não estou dentro, como você diz… porisso é que há uma confusão total. Eu coloco a arte quase como uma categoria antropológica – trans-estética, em todo caso - e o que é hoje um objeto estético ? Eu digo : não há objetos propriamente estéticos depois de uma certa revolução que houve, seja por Duchamp, por Warhol, etc, onde não se pode mais fazer arte como se fazia antes, salvo exceções que não justificam o resto. Não é porque teve Bacon, que a arte existe !


S.L. – Você sabia, e concordou mesmo assim em publicar numa revista de extrema-direita. É o seu orgulho que não o deixa se defender ?


J.B. – Orgulho… sim. Eu acho perfeitamente deselegante a defesa e o arrependimento. Eu não penso nada de " Krisis" , não ligo à mínima. Estou fora da moral política. Para começar, eu sou contra o princípio de realidade moral. É claro que eu não tenho uma opinião favorável sobre a extrema –direita. Mas também não tenho sobre a esquerda. E ao invés de perceberem que eu não sou conformista, me atacam… É impossível retificar essa história ; eu não vou admitir que é um erro, porque acho que é um falso processo. E não tenho mais nada a dizer ! Você me pergunta as mesmas coisas que estão me perguntando há dois meses ! Se não sou responsável pela minha imagem, como é que posso fazer isso, etc, etc…


S.L. – E você não é responsável ?


J.B. – Mas não ! Você não me vê nesse jornal, com o Johnny Halliday ? O que é que eu tenho a ver com isso ?


S.L. – Você não respondeu como é que fica a sua neutralidade diante dos problemas gravíssimos que existem hoje na França.


J.B. – Eu começo a entender como é que a " inteligência" bem pensante consegue fazer com que certas pessoas se tornem de extrema-direita ! Ainda não é o meu caso, pode ficar sossegada. Sabemos, desde 68, que não existe mais a esquerda, nem a direita. Que os dois são exatamente equivalentes. Escute, a única sorte da esquerda hoje é que ela tem o Le Pen. Aliás, foi ela que o colocou lá. Hoje o Le Pen é o único analista selvagem, radical, desta sociedade. Infelizmente este analista ele está na extrema-direita, e não há mais nenhum na esquerda. Mas, se há um, tanto melhor ! É uma grande uma sorte, pois se há anticorpos que se desenvolverão, será graças a Le Pen. No entanto, isso eu não posso dizer, pois serei injustamente acusado de tomar partido de Le Pen.


S.L. - É sutil demais para a cabeça das pessoas…


J.B. – É, porque elas entendem as coisas na contramão, são primitivas como aquela história do mensageiro que é morto porque traz uma notícia ruim (risos). Você não pode dizer coisas objetivas como estas, a partir do momento em que se recoloca em causa a impotência da esquerda, dos intelectuais, etc. Você não tem direito : é um traidor e tem que ser denunciado… Le Pen é idiota , estou de acordo com a esquerda, mas ele encarna, exorcisa, a própria idiotice e impotência da esquerda. São eles que o alimentam. Tudo isso é rudimentar, evidente…


S.L. –Você está fora dos terrenos políticos, mas-apesar de ser um artista, digo, um fotógrafo e um criador – pois inventa idéias e imagens - é um " outsider " também no campo da arte.


J.B. – Evidentemente eu também não estou dentro da arte. Para o problema específico dela, que hoje está difícil de isolar, pois foi misturado com a política, eu não tenho solução. Talvez um dia poderei intervir, mas não será para esclarecer a situação. Veja bem, existe um mal-entendido. Não tenho nada a ver com os artistas, não tenho nada a ver com o objeto de arte, tenho a ver com a arte como objeto. É o objeto da arte que eu coloco em questão. Não o que é bom ou o que é ruim, se a arte deve ser de vanguarda ou figurativa… Não é o meu problema. Esse é assunto de Jean Clair e de outros. O interior do campo estético, isso eles tem direito de expor e os artistas de tomar partido, mas eu não estou dentro, como você diz… porisso é que há uma confusão total. Eu coloco a arte quase como uma categoria antropológica – trans-estética, em todo caso - e o que é hoje um objeto estético ? Eu digo : não há objetos propriamente estéticos depois de uma certa revolução que houve, seja por Duchamp, por Warhol, etc, onde não se pode mais fazer arte como se fazia antes, salvo exceções singulares e radicais que vão contra estes movimentos de arte contemporânea banalizada e estetizada. Mas estas exceções não justificam o resto. Não é porque teve Bacon, que a arte existe !


S.L. – Pena que os críticos, ao invés de lhe atacarem, não se sirvam de suas idéias para alargar a discussão…


J.B. – Se os críticos fizessem isso, eles precisariam recolocar em questão um certo número de postulados, o status da arte como atividade privilegiada, essencial, intemporal, sublime, etc. Isso eles certamente não estão dispostos a fazer, porque terão que se abordar a si próprios e questionar a arte que eles mantem como uma marca de fábrica – não se questiona uma marca de fábrica.


S.L. – Você vê a arte como uma categoria antropológica, trans-estética, mas quando escreve sobre os artistas que gosta, não deixa de fazer " crítica" do objeto de arte, no sentido mais tradicional. É o caso de Charles Matton, Sophie Calle, Olivier Mosset, Bacon e até mesmo de Wharol e Duchamp…


J.B. – Para mim, Wharol não é bem um artista. Ele me interessa como alguém que passou ao outro lado. E mesmo os outros, Bacon é alguém que não está na estética, e sim na sua ilusão radical que lhe pertence. Eu não os defendo. Eles se defendem sozinhos… Para mim, os artistas verdadeiros e geniais são aqueles que fazem alguma coisa sem tomar para si a ilusão da arte e da história da arte. Da mesma forma como na teoria, onde o verdadeiro pensamento radical é aquele não representa mais a comédia das idéias ou da história das idéias. É isso que traça uma linha real de demarcação.


S.L. – Então, evidentemente, são os artistas com os quais o seu pensamento se identifica…


J.B. – Ah ! Sim ! Completamente. Sinto uma cumplicidade, uma intimidade. Mas, além do belo e do feio, do bem e do mal.


S.L. – Eu gostaria que você me falasse um pouco de seu último livro de entrevistas que acaba de sair, " O Paroxista Indiferente" . O título é ótimo ! Trata-se de um oxímoro, um paradoxismo, não?


J.B. – Tudo está no título (risos). O paroxismo é geralmente o S.L. último, extremo. Na verdade, não. Literalmente, quer dizer o penúltimo, antes do fim. Não é o fim. É o S.L. exatamente antes de quando já não há mais nada a dizer. É onde eu me coloco sempre : não no fim, porque não acredito nele, é uma ilusão, mas justo antes. É a minha posição estratégica. Antes do fim, ou depois dele, pois o fim não existe. E, depois " indiferente" , porque o oxímoro, enquanto palavra, também é exatamente homológico a isto : " oxis" quer dizer extremo, agudo, radical, e " móron" quer dizer neutro, banal, etc. Então, " oxímoro" significa exatamente " Paroxista Indiferente" . Você vê, há um espelho, e isto me agrada muito. Além do que, se parece comigo…


S.L. – É uma entrevista biográfica ?


J.B. – De jeito nenhum ! Eu recusei ! Todos querem sempre me levar ao terreno biográfico, às histórias, às pequenas histórias, etc, e também ao campo ideológico, político. Já é suficientemente complicado ficar no meu domínio.


S.L. – Mas as grandes personalidades tem uma biografia ! Não lhe interessaria uma biografia sua ?


J.B. – Eu não tenho biografia. A minha vida não tem nada. Eu ensinei vinte anos na universidade e escrevi algumas coisas. Não pertenci a nenhuma instituição, nem a um grupo… nunca tive uma existência pública como Malraux, nunca quis isso.


S.L. – As biografias falam das mulheres, dos amores, dos amigos…


J.B. – Eu não vou contar sobre as minhas mulheres ! ! ! Se é para contar sobre minhas mulheres e minhas viagens, então, basta ler " Cool Memories"  ! Esta é a minha verdadeira biografia. É uma maneira metafórica de contar a minha vida. Não me interessam os diários íntimos.


S.L. - " Cool Memories" é metafórico demais para uma biografia. Não se sabe o que é ficção, ou verdade…


J.B. – É isso. É o máximo que pude fazer. Eu também não sei o que é verdade ou não. Você lê nas entrelinhas…


S.L. – Você deve se divertir montando sempre um quebra-cabeças para que as pessoas reconstituam o todo …


J.B. – Sim. É isso que é interessante ! É preciso fazer as pessoas adivinharem as coisas. Há muitos elementos pessoais, mas elas não lêem, só as idéias, porque estão acostumadas a idealizar. Deve-se aprender a ver as coisas subjetivas também. Tudo que eu conto é igualmente subjetivo, mas precisa ser dado como expressionismo : " eu estou aqui ! eu existo ! gosto de pão de mel, etc !" Quando você se expõe assim, não é por acaso que fica caricatural ! Tenho apenas uma bibliografia e uma existência. Cioran dizia que muitos sacrificam a existência pela sua biografia… Eu não pretendo sacrificar a minha…


(1997)










Sheila Leirner - Você está preparando muitas coisas ao mesmo tempo: um grande livro que vai ter a mesma importância de "L'Échange Symbolique et la Mort" de 1976, ou seja, vai amarrar toda a sua produção de lá para cá como um marco; traduz Hölderlin; continua um último "Cool Memories" que começou em 1995 e termina no ano 2000. Qual é o lugar da fotografia no meio de toda essa produção?


Jean Baudrillard. - Tudo o que eu escrevi sobre a fotografia, a "troca impossível", o vínculo com a imagem e o virtual, etc, juntei em vários lugares, como no "O Paroxista Indiferente" e em outros livros, como os de entrevistas…


S.L. - Desde 1991, essa deve ser a quarta conversa que nós fazemos para a mídia brasileira. Hoje, porém, nada de paroxista indiferente, guerra do Golfo, ilusão do fim, crimes perfeitos, complô da arte, confusões com a extrema direita. Gostaria que falássemos sobretudo sobre fotografia, sobre a sua fotografia que poucos conhecem. Há quanto tempo você fotografa?


J.B. - Oh!la!la! Já conversamos tudo isso? (Risadas) Está bem, minha fotografia já tem uma década, mas ela se cristalizou melhor nos últimos dois ou três anos embora seja uma atividade paralela, pois os textos ficam sempre como ponto de fixação. Com a minha escritura eu faço uma coisa predestinada. Com a foto não. Quer dizer, pensando bem, até que sim… Eu não poderia fazer pintura, escrever romances, rodar filmes. Antes eu exerci uma prática de política universitária e agora exerço algo imaterial, que é a prática da imagem…


S.L. - Imaterial ? Você diz que fotografar não é tomar o mundo como objeto, mas transformá-lo em objeto !


J.B. - Sim. Quero dizer imaterial, porém não para mim. A minha relação é com o objeto, as situações, a luz e a matéria. Trata-se de uma ligação que não é desencarnada, de certa forma é até carnal. A foto parte do mesmo núcleo que a escritura. A matriz é idêntica. No lugar de idéias, imagens.


S.L. - Antes você não pensava assim. Lembro-me que há alguns anos dizia não estabelecer nenhuma relação entre escrever e fotografar. E que se existia algo em comum era seguir essa coisa que está do outro lado do sujeito, perto do objeto, essa coisa irredutível, que tem uma ausência própria. Você não procurava captar a realidade dos objetos, não queria interpretá-los, decifrá-los…


J.B. - É verdade. Contudo, o que eu busco agora é tomar os objetos em sua literalidade, antes que comecem a "significar". É um pouco como a linguagem poética que consegue existir antes de adquirir um sentido. Quando você escreve teoria, é difícil chegar lá pois o discurso tem sempre um significado. Mas às vezes você entra numa linguagem quase poética, mesmo na teoria…


S.L. - A fotografia não seria para você uma espécie de "prova prática", uma demonstração de tudo aquilo que você propõe em sua teoria?


J.B. - Não ! Isso não ! Demonstração não ! Não tenho nada a demonstrar.


S.L. - Uma prática dessa teoria ?


J.B. - Uma prática sim. Mas ela não é radical, pois se fosse não deveria nem mesmo ser estética. Eu próprio lastimo, mas acho as minhas fotos belas demais ! (Risadas). Tanto é que as melhores não são belas, as "melhores são as piores", como se diz. Porém, a meu ver, ali é praticamente impossível chegar a alguma coisa que seja tão radical quanto as idéias que estão na cultura. O radicalismo da fotografia não está na idéia, está na literalidade. Nela, trata-se de encontrar um puro modo de aparição, enquanto que as idéias e a escritura constituem um modo de composição.


S.L. - Se na sua fotografia existe a tentativa de encontrar um puro modo de aparição, a escolha do sujeito não deveria importar. Porém, se "os objetos esperam que você os tome", "que você os viole 'sur place'", como você diz, então porque só os objetos belos pedem essa violação? Porque as suas fotos nunca saem feias?


J.B. - Para mim não tem belo ou feio, mas eu também não vou pegar os objetos só porque eles são feios. Essa é a estética atual da feiúra, e eu não vou cair nela… O que existe, e isso é importante, preste atenção, é a conjunção entre os objetos e uma finalidade técnica. Chegar à que a captação se faça quase como uma escrita automática. Agora, há uma escolha dos objetos, é claro…


S.L. - Uma escolha estética…


J.B. - Sim. Senão eu ficaria só fotografando aquela janela em frente da minha.


S.L. - Então existe um desejo seu. Não são os objetos que escolhem você, não são eles " o sonham", não "é o mundo que lhe reflete", como você diz.


J.B. - Na verdade essa não é realmente uma escolha estética, é algo baseado na singularidade da imagem, da luz. Eu não sou a favor de fotografar tudo e qualquer coisa. Hoje em dia com a técnica de que se dispõe pode-se fazer ótimas fotos com o que se quiser. Eu não possuo talento técnico, procuro efetivamente algo de singular, um pouco como o "punctum" que Roland Barthes descreve.


S.L. - O "punctum" ou pontuação é a palavra que designa uma picada, uma marca, algo que vem ferir ou pungir o olhar. Os objetos que você escolhe talvez possuam para você esse "punctum", mas o resultado de suas fotos é quase sempre indefectivelmente plástico.


J.B. - Você pode pegar objetos que já são estetizados, que são remarcáveis por sua própria qualidade estética. Ou você pode lhes impor uma estética, o que fazem hoje os fotógrafos. No meu caso, trata-se de escolher algo excepcional, porém não por meio de uma forma estética. É o objeto que me acena.


S.L. - Será que você fala de Barthes nesse ensaio "A Câmara Clara", porque ele distingue a fotografia da arte fotográfica; e você, no fundo, rejeita a sua fotografia como arte ?


J.B. - Exatamente. Existem grandes fotógrafos, belas fotos que fazem parte da imensa maioria da arte fotográfica. Aqui não se trata de arte. Eu não sou um artista.


S.L. - Sempre a mesma história !


J.B. - Então não vale a pena repetir (Risadas).


S.L. - Você sempre diz que não é artista, mas toma os objetos em sua literalidade, em seu "punctum" que você descobre com a sua pura sensibilidade, e, como os poetas, tenta fazê-los existir antes que adquiram um sentido. Você sabe bem que a arte não é apenas uma questão de estética e a arte conceitual está aí para provar isso. Pois que só pensa pelos contrários, talvez você seja um artista apesar de você, não?


J.B. - As vezes essa é a melhor maneira de sê-lo (Risadas)! Mas, veja bem, como você diz, o livro de Barthes não é um livro de fotógrafo. Pode ser visto como um livro metafísico, de teoria, de um pensador. A foto o interessa tanto quanto o texto. Que prazer e paixão pode-se ter por uma imagem, e não apenas o prazer estético. Não é nem mesmo do nível do julgamento estético, pois o "punctum" está além dele, é uma forma de sedução instantânea. É um malentendido falar de sujeito e objeto nessas histórias. Mas é preciso pensar também que é um mito que nós possamos estar além do julgamento. Evidentemente existe sempre o julgamento, como existe sempre o discurso, como sempre existe uma escolha, uma afinidade… é como nas relações pessoais. Mas não sou um artista. A minha jogada é muito mais da ordem do fatal do que do conceitual ou do estético.


S.L. - Depois a coisa pode entrar na historia da arte…


J.B. - Depois a coisa pode entrar na historia da arte, mas é uma outra existência. O "punctum" é uma matriz que escapa à toda categoria institucional enquanto ele existe, depois ele cai no mundo, na mundaneidade estética, e ninguém mais é responsável. Mas eu acho que existe um verdadeiro segredo onde as coisas aparecem e se produzem sozinhas, possuem uma forma de poder e de ilusão. A questão que atravessa o livro de Barthes é "onde está a realidade?". O que você busca, por meio da imagem, é por em jogo essa realidade e verificar, paradoxalmente, que o mundo não é real. Há uma ilusão fundamental que é preciso conseguir captar. Depois, bem, a realidade existe também. Ela existe mas, sou agnóstico, não acredito nela.


S.L. - Porque não ?


J.B. - Se a realidade existe a gente não precisa acreditar nela. Pois se acreditarmos, ela torna-se um objeto de credo. E se for um credo, então deixa de ser uma realidade objetiva. Se ela é uma realidade objetiva, não precisa que nós acreditemos nela pois é objetiva. Porém, se você acreditar nela, ao contrário, você não a estará honrando como uma objetividade e ela passa a não existir mais. É como Deus, você entende? Se você começa a acreditar nele, ele não existe mais enquanto Deus. Torna-se um objeto de credo. E isso não O honra muito, pois na sua Existência Ele não tem nenhuma necessidade que as pessoas acreditem Nele. A única chance de a realidade existir é nós não acreditarmos nela…


S.L. - O fato é que vivemos sob um sistema de valores realistas. Veja o caso de Henri Cartier-Bresson, por exemplo. Há alguns anos, na conversa que tivemos para o Caderno 2, ele declarou que a fotografia é um pequeno "métier" e que o seu processo não o interessa, pois o que lhe importa é a vida e o meio imediato de transcrevê-la. O que você pensa disso?


J.B. - Eu só o encontrei umas duas ou três vezes. Ele tem consciência do seu gênio? É ansioso?


S.L. - Ele é terrivelmente mau-humorado. Não tem consciência disso como fotógrafo, mas tem ansiedade e pensa que possui gênio como pintor e desenhista, que é onde não possui gênio nenhum.


J.B. - (Risadas) Cartier-Bresson é uma lenda, um mito. Mas a sua fotografia não é a que mais me toca. É uma espécie de arte poético-realista de uma certa época… uma bonita época que aliás teve o seu apogeu no cinema, mas não sei… essa foto não é exatamente específica, ela é mais ou menos bela, mais ou menos bem sucedida, anedótica, descreve uma sociedade. É humanista, conta uma história, faz uma narrativa um pouco retrô. E parte do seu sucesso enorme é que se trata de um retrô.


S.L. - É que nós vivemos em termos de nostalgia estética…


J.B. - É. Mas estamos cheios de ver isso! Estamos cheios de ver esses dois meninos segurando esses dois litros de vinho, essas "obras-primas" ! (Risadas) Que, a meu ver não são nada grandiosas.


S.L. - Você pensa a mesma coisa de Sebastião Salgado?


J.B. - Não. Ele é admirável se quisermos, mas suscita o problema do voyeurismo sóciopolítico. A sua fotografia trata do humanismo da miserabilidade. Tudo isso me provoca um problema quase moral que não tenho vontade de resolver. É a foto-testemunho sobre a qual escrevi também algumas páginas. E aqui igualmente é preciso voltar a Barthes, pois o testemunho é o fim da fotografia. Ele inscreve uma idéia, uma verdade, ele não fotografa o que é, mas o que não deveria ser. Isso é uma posição moral de denegação. Se esta é uma foto moralizante, em relação à própria imagem ela é um contra-senso. Seria preciso que a imagem pudesse estar lá por sua especificidade e não curto-circuitada por uma idéia moralista, histórica…


S.L. - É uma imagem narrativa de quem, ao contrário de você, não é nada agnóstico com relação à realidade.


J.B. - É uma imagem usurpada. Há um abuso de imagem. Ela serve para exprimir algo, então é avassalada, não é imagem enquanto tal. Pode ser bela, mas é uma mistura de verdade, testemunho, moral e estética. Isso são valores que não me interessam. É a forma que conta. De todo modo, as fotos de Salgado são admiráveis pois tem uma bela composição, são esteticamente excelentes. São mundanas, no sentido em que a miséria do mundo também é mundana. Não devemos falar isso de forma demasiadamente brutal, senão nos tornamos cínicos, mas é preciso dizê-lo…


S.L. - Voltando a Cartier-Bresson, ele diz também que pode-se fazer qualquer coisa com uma máquina fotográfica, que só é difícil descascar uma batata com ela…


J.B. - (Risadas) Ele diz isso? Ele é engraçado ! Isso é verdade.


S.L. - Ele afirma ainda que todos são fotógrafos, que há tantos fotógrafos no mundo quanto aparelhos. Você concorda?


J.B. - Sim. Dá para ir ainda mais longe: dos livros sobre fotografia, há também o de Wilheim Flusser, nosso falecido amigo em comum que você convidou para as suas bienais. Flusser é bem mais radical que Cartier-Bresson. Ele diz que o fotógrafo não é senão o operador das possibilidades técnicas da máquina. É um pouco a reedição da fórmula Mac Luhan, "o meio é a mensagem". Essa teoria é justa.


S.L. - Pensando bem, não ficou na lembrança muita coisa importante escrita sobre a fotografia. Tem você, Barthes, Susan Sontag, Flusser…


J.B. - É verdade. Mas você sabia que existe um texto fundamental de Italo Calvino sobre a fotografia que ninguém conhece, que se chama "A aventura de um fotógrafo" e que está num livro que se chama "Aventuras" ? Extraordinário ! Nem é preciso mais escrever sobre a fotografia pois tudo está lá. São dez páginas onde ele conta a história de alguém em seu processo de se tornar um fotógrafo. Esse personagem fotografa obsessivamente a sua amante em todas as posições, ela se cansa, o abandona, e ele começa a fotografar todos os objetos que estão lá no mesmo espaço. Contenta-se em fotografar eternamente tudo, e a história termina num delírio…


S.L. - Esse paroxismo o seduz ?


J.B. - É verdade que se estivermos possuídos pelo demônio da fotografia, a coisa termina num delírio, pois uma máquina técnica como essa é delirante em si, lhe dá todas as possibilidades e abre para a loucura!


S.L. - Essa loucura não está relacionada também com o tempo ? Segundo certos fotógrafos, mesmo os mais acadêmicos, existe uma angústia muito grande no delírio temporal. Ali, o presente concreto que pede para ser captado acontece numa fração de segundo, o que é desagradável e maravilhoso simultaneamente.


J.B. - É essa a diferença entre a fotografia e uma atividade estética como o desenho, por exemplo. O "punctum" não está apenas na idéia, está também no tempo. Quer dizer, existe um momento irreversível, imediatamente terminado e os fotógrafos têm razão.


S.L. - Muito embora você esteja no sentido inverso dos fotógrafos acadêmicos, que partem desse "instantâneo", que é o "punctum" no tempo, para fazer uma obra pictórica e linear, que é oposta a ele…


J.B. - Sem dúvida. Para mim a fotografia não acontece senão sob a base da desaparição da vontade estética, apenas como objeto puro…


S.L. - Aí entra a questão da ficção. Uma vez que você toma o "objeto puro" como personagem "em via de aparição" num mundo em cuja realidade não acredita, você está criando uma ficção para que ele exista. Um cenário artificial, composto por meio da fotografia, para abrigar a sua existência. Isso me remete ao trabalho de fotógrafos como Miguel Rio Branco ou Cindy Sherman, que, sem serem acadêmicos, certamente partem da estética e da subjetividade para chegar à narração pictórica, às vezes barroca, dessa realidade.


J.B. - Sim, mas isso é performance ! Nesse momento há um ciclo de atividades que é a construção de coisas e em seguida a representação delas. Eu não vejo onde está o momento original da foto lá dentro. Não é regra geral, mas se a foto consegue apagar o trabalho, fazer uma elipse sobre a construção e a demonstração do objeto, então ela volta a ser fotografia pura e simples. Eu não faço trucagem. Sempre existe um mergulho, uma escolha de luz, uma mis-en-scène subjetiva, mas eu os separo daquilo que vem de fora, eu mesmo venho de fora… E acontece um encontro entre nós dois. Ao contrário de Rio Branco, não há nada de barroco no meu trabalho.


S.L. - Como é que você trabalha ?


J.B. - O meu método não tem nada a ver com o desses ficcionistas, mas também não tem relação com o de Cartier-Bresson. Eu tiro uma quantidade enorme de fotos e depois jogo fora o que não gosto. Quando fotografo, não controlo a situação e não quero controlá-la. Aí é um exercício completamente diferente da escritura. Gosto desse sentido aleatório da fotografia. Mas o importante é saber fazer a elipse. Toda a força da linguagem está nela.


S.L. - E se você tivesse que escolher um fotógrafo com quem sentisse uma afinidade ?


J.B. - Eu escolheria Luigi Ghirri ou Wim Wenders. Temos em comum não fotografar seres humanos. São universos hiper-realistas interessantes, mesmo que tenham se tornado um pouco estereotipados.


S.L. - Você não tem medo de também criar estereótipos com as suas fotos?


J.B. - Não! Não! Não vejo nada de comum entre minhas fotos. Estão todas numa espécie de desordem de cenas, objetos e ninguém jamais conseguiu encontrar um tema. Isso me deixa muito feliz! Não há personagens, rostos, sociologia, história, nada. Fiz a elipse máxima da coisa… a ponto de me perguntar onde está a realidade lá dentro.

S.L. - Existe uma imagem difícil de esquecer que você inventou para a proliferação das obras de arte. Você disse que elas crescem como cogumelos cobrindo o mundo. Não fica assustado em pensar que as suas fotos e os seus textos se proliferam também?



J.B. - (Risadas) Sim, sim. Isso me incomoda. É porisso que eu pratico a "arte da desaparição", ou seja, a arte de dosar homeopaticamente a existência dos objetos dos quais eliminei as minhas próprias pegadas. Quer dizer, você dá ao mundo objetos sublimes no sentido literal, que não pretendem nada, despojados ao máximo, e que são objetos de aparição/desaparição. Não são produzidos, construídos, não pertencem às instituições em termos de significação, sentido, etc. Pratico uma arte de ilusionista, não sou produtor, criador ou artista. Tudo isso é uma superestrutura completamente paranóica. Por meio da elipse eu reduzo a realidade atravancada a tal ponto que chego à forma mínima. É a forma mais intensa, pois não tem uma existência representativa.


S.L. - Em que outros lugares encontramos formas parecidas a essas procuradas por você?


J.B. - Na música, por exemplo. Existem músicas que se dissipam. Elas não se impõem, elas se resolvem. Tudo se passa em termos de uma resolução perfeita. Não há resíduos, como os que encontramos nesse mundo do deteriorável. A música é um objeto que possui a magia de aparecer e desaparecer ao mesmo tempo. É preciso essas duas forças reversíveis, senão a sua obra fica como uma coisa produzida que atravanca a paisagem e se acumula em estoque. E há equivalentes desses objetos, vazios e ao mesmo tempo presentes, no texto ou na imagem.


S.L. - Sabemos o desgaste que sofreu a palavra revolucionário. No entanto, para terminar, se entendermos por ela a capacidade de mudar o sistema de valores, poderíamos dizer ainda que as suas estratégias no texto e na imagem são revolucionárias ?


J.B. - Eu não tento mudar o sistema de valores. O que eu pretendo é ficar fora do jogo e inventar uma outra regra para ele. Isso não é revolução, pois infelizmente não existe mais uma vontade política. Eu me coloco num universo paralelo, onde não há contradição violenta contra o sistema dominante, onde, mesmo que a minha posição o coloque em questão, não há nenhuma chance de revolucioná-lo na sua lógica. Estou na singularidade.


(1999)




As entrevistas foram gentilmente cedidas por Sheila Leirner, à quem agradecemos.




Mais informações:
http://sheilaleirner.blogspot.com/2007/03/isto-no-um-necrolgio.html