terça-feira, 15 de dezembro de 2015



A DESCOBERTA

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.

OSWALD DE ANDRADE

Pintura: João Calixto

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015


Perdida na escola

Há um tempo atrás
Velho demais para mim
E um tempo para frente
Novo a não reconhecer

Este verso estranho e
Andrógino
Fica no meio

Nem é aqui
Que me acho.

Adriane Garcia

Arte: Pintura de Marlene Dumas

sexta-feira, 27 de novembro de 2015


DUREX BURROUGHS durex escada / durex laços de família / durex beatnik / durex bronze / durex espelunca / durex camisinha / durex destino /durex cola-tudo / durex neurônio /durex flácido / Durex morte anunciada / durex máquina peluda / durex identidade / durex festim diabólico / durex basta amar / durex vira-lata / durex trem-de-ferro / durex seu escravo / durex cidade enganosa / durex extremamente cínico / durex vai com as outras / durex datilografado / durex baby boomer / durex chá das cinco / durex fita-de-cinema / durex perfume de gardênia BURROUGHS DUREX.

        

 Texto = beto palaio
Arte = colagens com fotos e durex de william burroughs

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

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RETAS ATÉ NÃO SER

A sinuosidade
das veredas
ao ardor do sol
não podem
enfraquecer
a aspiração
de chegar
ao cume.

O que não é
totalmente reto
é tortuosidade,
flexuosidade,
rodeio,
entresseio,
circuito,
reviravolta.

Volteio
de travessas
ao longe
vistas do cume
tornam-se retas
sem medir
serpenteios
alheios

BETO PALAIO


Pintura: Kazimir Malevich

quinta-feira, 24 de setembro de 2015



O DOCE VEM MORRER NO MAR

Sentimento e apatia. Esperar que tudo se ajeite. Calar e consentir. Somos o que cabe no descontentamento. Culpas nenhumas. Temos disso. Tempo de abrir as velhas portas. Admita. Somos o que somos. Desunidos na sorte. Um dia e nada mais. Nesta aguardada lama. Ao adentrar o oceano. Os fatos já vividos. Corroem-nos. Represados. Nunca admitir. Que somos. Cercas vivas. Um calhamaço de recordações. Fatos marcantes. Um pequeno desejo de corrigir. Sementes de acertar. Entretanto. O filme já está pronto. E repete-se. Contudo. Nunca mais poderemos. Neste mar de desconhecimentos. Cartões postais. Areias brancas. Numa manhã. Desde o lugar em que aportamos. Nada pode nos alcançar. 

Beto Palaio

quarta-feira, 22 de julho de 2015

headlikeanorange:

House sparrow


Pardalzinho

O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira

sábado, 4 de julho de 2015


O presente estaria cheio de todos os futuros, se já o passado não projetasse sobre ele uma história. Mas, infelizmente, um único passado propõe um único futuro - projeta-o diante de nós como um ponto infinito sobre o espaço. 

André Gide

Ilustração: Jean-Michel Folon

quinta-feira, 16 de abril de 2015

 

Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus.
Eduardo Galeano

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O LIVRO DO DESASSOSSEGO


Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.
A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.

Fernando Pessoa

sábado, 7 de fevereiro de 2015


CARTILHA

A

Não quero meu poema apenas pedra
nem seu avesso explicado
nas mesas de operação.

E

Não quero os sóis que praticam
as mil fotos do objeto, a noite sempre
nascendo da noite em revelação.
Preciso
da palavra que me vista não
da memória do susto
mas da véspera do trapezista.

I

A sede neste deserto
não me conduz ao mirante, ou antes:
olho selvagem.
A sede ultrapassa a sede onde
renasce o objeto, sua
resposta miragem.

O

Há seres insuspeitados no gênio
deste cavalo.
A lucidez desta pedra oculta cada
manhã
seu cadáver delicado, este mistério
que pulsa nos olhos da borboleta.

U

Quero meu poema apenas pedra:
ou seu fantasma emergindo
por onde dentros e foras.

CACASO