quinta-feira, 31 de janeiro de 2013



UMA GUERNICA MAL-ASSOMBRADA

No madrigal de muitas horas. O abandono de objetos impessoais deixados para trás. Um punhado de gesso secou no canto da sala de estar. A grama cresceu nos vãos do assoalho outrora bem encerado. Três moedas sem valor estavam escondidas ao meio do excesso de pó no alpendre já destelhado. Alguns pregos enferrujados dormitavam sobre um pedaço de estopa cor de terra. Vários trechos de parede já caíram. Desta forma beijos de luar varrem um canto do quarto principal de dormir, onde agora repousam folhas secas acumuladas desde os últimos vinte anos. Aquela casa era mal-assombrada. Isto, sem peias, diziam os moradores daquela cidadezinha de Minas Gerais. “Não estou atrasada não, mamãe”, súbito aquela casa em ruínas ganha vida. O telhado se recompõe, as janelas e portas voltam aos seus lugares. Até o cortinado de voal se põe a esvoaçar com a mais leve brisa de verão. Apenas para observarmos fielmente o que se disse até aqui. Desde Agiotti, Callabrese e Martelleti. Sabia-se desses impasses em relação à uma estória instável e cambiante. Personagens que moram nos livros são como aves de arribação. No entanto, paradoxalmente, eles adoram ficar emparedados entre duas capas. Nós, leitores, somos quem os liberta deste tipo de crisálida. Entretanto são brevíssimos os estudos que tratam da liberdade de ir e vir do personagem em uma estória dita verídica. Os livros são suas casas, assim como também são os melhores amigos dos leitores. A quem então seriam fiéis os personagens? Ficariam eles devendo algum tipo de subordinação ao leitor, ou o autor é quem teria o privilégio de mando no destino exemplarmente submisso do personagem? Em geral, as pessoas que lêem trechos filosóficos e, diríamos, assustadores até, quando lidos em aeroportos, fila de lotações, metrôs lotados, sala de espera de dentistas, e locais afins, não se preocupam muito se o personagem deve ficar ou não restrito ao livro. Há alguma leviandade do leitor que aproveita o tempo para levar o personagem de alguém para passear junto com eles. Mal sabem esses incautos leitores da preferência do personagem por ficar dormitando ao lado de uma rede ou sobre um criado-mudo às espera de uma leitura responsável e pensada. Em resumo, reafirmamos que o livro pertence ao leitor enquanto o personagem não é dono de nada, além de ser leviano, irresponsável, chispante, sem emprego ou profissão definida. Eis que se joga novamente o laço na estória que foi até aqui pessimamente contada. Finalmente Dalila desceu as escadas para se despedir, à porta, de sua mãe aflita. Ambas sabiam que aquela seria a ultima visita ao banco feita por Dalila já que, com o falecimento do pai, tanto ela como a mãe resolveram deixar aquela casa e mudarem-se para o Canadá, onde Dalila tem uma promessa de casamento vinda de um magnata da família dos Rotondi, donos de uma empresa de gravações musicais na cidade de Montreal. Isto de fato ocorrera. Em menos de um mês Dalila estava casada com Estéfano Rotondi e nunca mais voltou para o Brasil. Vivendo no Canadá, a Sra Rotondi se esquecera completamente da velha casa no interior de Minas. Esta casa que foi aos poucos ficando decadente e se tornou uma ruína tida nos arredores como assombrada. Mas há quem desafie a idéia das tais visagens sobrenaturais. Hoje alguns corajosos meninos daquela cidadezinha mineira cismaram de visitar a casa mal-assombrada durante a noite. Eles se muniram de faroletes e invadiram a propriedade às nove e quarenta e cinco da noite. Os grilos cantavam ali, mais até do que em qualquer outro lugar na cidade. Havia também pirilampos ocasionais. De resto o vento zunia nos espaços abertos das paredes e isto fazia os meninos ficarem assustados. No mais, aquela casa sob as luzes dos faroletes parecia-se mesmo era com as ruínas da cidade espanhola de Guernica após os bombardeios de 1939. Mas tudo isto não passa de uma comparação metafórica vinda de um leitor pouco afeito à saltitante projeção de sombras quando alegremente vindas de uma dezena de faroletes, as quais dançam o tempo todo na mão de crianças um tiquinho só assustadas. Em resumo, personagens nenhuns. Então não há estória que se sustente muito tempo na ausência de personagens. Assim dá-se por adiado o descrever desse conto da Guernica assombrada.

Beto Palaio

Foto: Eugene Richards

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013



CATILÉIA E O FIM DO MUNDO 

“Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer”... No jardinzinho de sua casa, Catiléia desfolhava uma margarida. Perto dela, no caldo morno da manhã, uma borboleta balança, dependurada numa rosa vermelhíssima. Catiléia, no entanto, está distraída e nem isso vê: “Deus me livre, margarida... Não te desfolho mais... Ah, como meu romance é barato!”, isto dito por uma aprendiz de enfermagem que em breve estaria no ponto de ônibus, o que por hábito fazia, dia-sim, dia-não. Tudo para visitar sua mãe na ala das prisioneiras da penitenciária local. Naquela quarta-feira, enquanto esperava pelo bendito ônibus sob um sol de amolecer asfaltos, Catiléia usava uma blusinha quase transparente e estava deveras irritada por ter rompido o laço de uma de suas sandálias. Ainda chateada, Catiléia lembrou-se da visita à sua mãe na vez anterior. Foi quando o carcereiro a tratou com desdém. É que embaixo da mesa do carcereiro havia um gato esfomeado. Para aquele gato Catiléia ofereceu um pedaço de bolo que trouxera para sua mãe. Entretanto o carcereiro, bastante mal-humorado, recusou aquela oferta. O gato, curiosamente, também lhe foi estranho e nem se mexeu à procura do petisco. Parecia ele contrito e rígido na posição de sentado: magérrimo estava, magérrimo permaneceu. “Nunca vi isto? Nem se pode fazer uma boa ação por aqui?”. O carcereiro logo resmungaria algo sem tirar os olhos de um jornal encardido que lia: “não vem posar de garçonete por aqui! Já não chega os advogados safados que me prometem propinas?”. Catiléia não via relação nenhuma entre dar algo de comer para o gato e os obséquios que lhe pediam os advogados em favor de algum preso. “E o que eu tenho com isto?”, respondeu rispidamente Catiléia. O carcereiro apenas abaixou o jornal, quedou a cabeça para o lado e soltou uma cusparada no encardido chão daquela ante-sala ladeada por engradados de ferro: “menina, vai cuidar do chantili do seu bolo... Não me chateia!”... Chega-se a um empecilho neste conto onde às vezes um textinho faz o obséquio de não servir a nenhum propósito revelado ou por se revelar no chamado “mundo cultural”. À isso chamam “impasse da vanguarda literária”, ou mesmo de “inovação estilística sem finalidade”. À mim, que insisto em continuar a escrever, só me ocorre um sentimento de pânico por estar perdendo contato com minha personagem Catiléia, a menina-flor. Por isso deixo de lado qualquer opróbrio oriundo dos incensais literários e sigo em frente usando agora um tapa-olho—desses que se usam em cavalos puxadores de carroças—para não afastar-me do priorado da estória que poderia ser sobre uma senhora da alta sociedade carioca que gostaria de emagrecer, mas que se empanturra de bolachas de milho com erva doce todas as manhãs. Ou sobre o Rei Arthur que não conseguiu retirar a espada cravada na pedra, ao invés disto ele urinou nas calças ao fazer muita força para retirá-la. Ou a estória poderia até versar sobre um cálido romance entre uma garota católica e um jovem protestante na Irlanda invadida por tropas inglesas nos anos setenta. Ou mesmo sobre o episódio de um pequeno pacote contendo uma poderosa arma de disseminação bacteriana que um terrorista viria revelar, num simples sussurro, ao ouvido de uma escritora de sucesso, quando disse para ela, ao lado de sua poltrona no cinema, que estava escondendo aquela temível unidade propagadora em sua bolsa. Isso aconteceu do terrorista falar enquanto ela estava bastante distraída vendo um filme na matinê da seção da tarde. A escritora, diante daquela situação terrível em que agora estava envolvida, passou a experimentar uma incontrolável taquicardia. Foi quando ela grita por socorro e tiveram de interná-la às pressas, quando, entretanto, apesar das dificuldades físicas, ela ainda tenta revelar que dentro da sua bolsa havia aquele pequeno embrulho portador de uma maléfica arma de efeito genético—a qual propagaria endorfinas atrofiadoras como lhe afirmara o terrorista—algo que acabaria por fazer com que a humanidade inteira fosse vítima de numa catástrofe sem limites de causa e efeito. Ocorre que, no entanto, ninguém no hospital parecia ligar para isso e o pequeno pacote de cor parda acabou indo para o lixo. A salvação da raça humana desta forma passou a depender unicamente da sensibilidade da enfermeira da noite, a qual a escritora algo sedada espera que chegue para que ela possa dar-lhe o aviso. Porém, naquele exato momento, devido a seu estado crítico, a escritora não atina de que maneira iria sinalizar para a enfermeira da noite sobre aquela ameaça de alastramento atômico que agora se encontra no lixo. Mas logo a enfermeira, que se chama Catiléia, entra em seu horário de trabalho noturno, isso por volta das vinte e uma horas. Lá fora a catedral da Candelária bate o aprumo do horário nas badaladas noturnas quando Catiléia toma o pulso da paciente e se assusta: a escritora que passara mal dentro do cinema acabava de falecer. Com isto Catiléia toma as medidas cabíveis dentro das circunstâncias de praxe. Ela aperta a campainha de emergência e chama pela enfermeira-chefe. Ao chegar, aquela enfermeira responsável pela equipe noturna observa alguns detalhes fora do comum na aparelhagem de oxigênio, principalmente pelo tubo coletor haver sido arrancado desde o bocal do filtro de ar, e também pelo escalpe coletor de soro estar igualmente rompido. Só então ela nota que um pequeno pacote pardo estava sendo oculto, sob a contrição de dez dedos, nas mãos enregeladas da falecida. Imediatamente a enfermeira-chefe pediu ajuda à Catiléia para juntas poderem libertar aquele pequeno embrulho daquelas mãos encrespadas. Querendo entender aquilo, logo em seguida, Catiléia abre o pacotinho e, algo decepcionada, joga todo conteúdo fora, pois o que ela viu ali não passava de um punhado de pó de café... Pelo menos era o que Catiléia pensava quando jogou toda aquela massa enegrecida dentro do saco de lixo.    

Beto Palaio 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013



TEM AÇÚCAR, CLARICE?


"Tem açúcar, Clarice?”, Clarice chegou até o vão da porta aberta. “Mas... Outra vez?”. Do pórtico já se tinha uma vaga idéia de que seu apartamento estava selvagemente desarrumado, contudo, uma invasão de privacidade, mesmo que equivocadamente supérflua, como neste caso, tal estivesse eu perdido o juízo. Com esmero, não obstante, insisti no meu pedido de empréstimo de uma xícara de açúcar: “mas, Clarice, depois te dou metade do bolo que estou fazendo”. Ela pareceu conformada, e desapareceu rapidamente—não sem antes resmungar algo incompreensível—para retornar com uma velha xícara de porcelana repleta de açúcar. “Chega de crime e castigo agora?”. Tudo em Clarice vinha à tona como num celuloide literário. Em sua amada garganta de gestar lábios-palavras. “Depois se vê”, respondi eu, ainda titubeante se deveria ou não tomar de vez aquela xícara. Lentamente minha mão direita se dirigiu em direção ao açúcar oferecido, nem tão gentilmente cedida, diga-se, por Clarice. Os segundos pareciam chacais uivadores, gritadores, ladradores, mordiscantes, fervilhantes e, no entanto, inferiores. “Vai pegar ou não vai?”, disse Clarice, com seu rosto ríspido, impávido como um gorgorão acantonado na catedral de Notre Dame de Vie. Meus dedos metamórficos tentavam se aproximar, ora em congeladas poses de pedras lascadas, ora em medusas de pimpães medos. Isto é um fato consagrado. O homem é o homem e suas circunstâncias. O frigir dos ovos em óleo de fervura. A invasão da Normandia. A Heróica sendo executada pelo próprio exército de Napoleão. Gradações de impertinências. A antigüidade, temida em tudo, atrai o papel sulfite. Antífrase da doçura. Horror, cadafalso e calvário são gravados lentamente, ao sopro divino do ink jet, na impressora HP. Excluir impossível catártica sombria tragédia. “Vai pegar ou não vai?”, ela parecia mesmo nervosa. Seu olhar, em chispas, parecia até repetir isto: “carregue este seu fardo de açúcar, e desapareça!”. Evidentemente que dava razão à Clarice, pois ninguém gosta de correr riscos. Aos enredados: confisca-se no porto todo carregamento de açúcar que se levam em sacos de estopa. ”E então?”, disse ela já aumentando a voz. O dia corre, entretanto, e ela calou-se. Apostei nisto. Querendo já desistir de levar o açúcar para casa. Entretanto. Mão de lixa tem o tempo. A arte segue a paixão, o ciúme e o ódio. Há uma réstia de refúgio e amparo aos desesperados deste Rio de Janeiro. Faz calor na Tijuca. Voltam-se-lhes as bênçãos. E os, agora inutilizáveis filtros dormentes findam em lagos quietos. Tudo o que rasga o tempo é o que costura o tempo, e a História, a vitalícia, é um assalto ardiloso da qual nos protegemos no que se sabe e no que não se sabe. Assemelham-se. Tudo existe de novo debaixo do sol. O florir e o murchar são fatos inevitáveis. Entretanto é isso que faz as flores se tornarem tão irresistíveis. Pois Clarice adocicou a voz numa oferta irrecusável: “toma logo esse açúcar... É de coração... Não o coração selvagem, entenda bem!”. Tomei da xícara que estava ternamente acomodada nas mãos amigáveis de Clarice: “grato por isto, depois te trago um pedaço do bolo”. Clarice sorriu com a solução do impasse e depois entrou de volta para seu apartamento e fechou a porta silenciosamente.


Beto Palaio

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013



JUDITE E ANTONIA

Sobre duas mulheres apaixonadas e de como passaram a morar juntas. Tudo parecia estar às mil maravilhas entre elas, até que uma delas conheceu Antonia. Embora nunca tivessem se visto antes. Judite e Antonia estavam pedalando suas bicicletas no parque local. Foi quando ficaram lado a lado, numa abrupta coincidência, naquele esplêndido dia de sol. Estava mesmo um belo dia de brisa morna, com cada uma cuidando de pedalar sua própria bicicleta. Então houve uma ação rápida do destino. Foi quando uma bola colorida passou por elas e, atrás da bola, uma menina esperta que nem olhou para o lado quando atravessou na frente das bicicletas. “Geralmente estamos distraídos para tudo, não é mesmo?”, Antonia disse isto com um sorriso lindo e elas ficaram amigas na mesma hora. O que houve entre elas naquele Domingo de sol foi que estacionaram as bicicletas sob uma frondosa árvore. Ali conversaram quase o dia inteiro, sem sentirem fome ou sede, apenas empolgadas com tudo o que descobriam de comum para a constatação de que havia algo mágico entre elas. Judite, entretanto, não falou sobre sua namorada, e Antonia também não falou que estava sozinha após a separação de um noivado que se arrastou por mais de quatro anos. Por fim. Elas marcaram de pedalar novos assuntos, no mesmo local, para o próximo Domingo. Na Segunda choveu. Na Terça garoou. Na Quarta o céu estava encoberto. Na Quinta choveu de novo. Na Sexta choveu mais ainda. No Sábado o dia clareou. No Domingo o sol brilhou lindamente. A semana passou depressa. Judite veio com sua bicicleta no dia combinado, mas Antonia não apareceu. Judite ficou deveras preocupada e resolveu passar no endereço que Antonia deixara para ela. O prédio onde Antonia morava não ficava muito longe do caminho que Judite fazia, vindo do parque, para voltar para casa. Então ela resolveu passar no apartamento de Antonia. Vejam a surpresa: um envelope esperava por Judite na portaria. Parece até que Antonia adivinhou da preocupação de Judite após esperar por ela no parque. Um papel pardo continha um belo conjunto palavras, escritas com zelo, sem expressarem um único rasgo de ambiguidade  Ali Antonia  manifestava seu sentimento por não ter ido se encontrar com Judite no parque. Dizia que algo terrível acontecera com ela, sem entrar em particularidades. O bilhete continha ainda revelações que Judite não leu em voz alta. Preferiu chegar em casa, se ocultar no banheiro, amassar a carta e acender um fósforo para finalmente queimá-la. Os restos de carvão desceram com a descarga para que nenhum vestígio ficasse por ali. Depois Judite foi para a cozinha preparar algo para receber sua namorada Deolinda. Com isto Judite procurou esquecer sobre aquela carta fatídica que poderia haver proporcionado uma ponte valiosa entre um e outro ser neste planeta, mas que foi lentamente amassada e incinerada para que Antonia continuasse a ser apenas uma boa lembrança. Uma luminosa lembrança, aliás...


Beto Palaio

sábado, 19 de janeiro de 2013






Revejo o trajeto fatídico da faxineira para me entregar o envelope e levar de volta o sanduíche de presunto intocado.


DONA GLORINHA EM TRANSPARENTE. 

Qual nada. Ferviam invejas sobre mim. Eu coroado de lírios. Sendo tão respeitável quanto o caminho de Damasco à Paris. Tudo ótimo, até que surgiu a realidade para me prestar serviços com cartas anônimas. Uma após outra elas foram chegando. Gritos rascantes eram o que elas me inspiravam. Soluços ocultos que emitia enquanto urinava no vaso sanitário adornado por um tablete azul de desodorizante. Nem sabia mais da minha dormência burguesa. Guardava comigo as cartas como se guarda o final dos filmes. Procurava esquecer. Eis a trama. Dona Glorinha, minha mulher, andava me traindo. Se fosse eu enumerar as denúncias oferecidas pelas cartas anônimas, Dona Glorinha deveria possuir mais de vinte amantes. Ao que me proponho? O trajeto da faxineira, da cozinha à saleta de leitura, uma boa meia hora, apenas para me trazer um sanduíche de presunto. Eis que ela surgia prestativa, com um sanduíche e mais uma carta na bandeja: “o senhor recebe mais cartas que o Papai Noel na época do Natal”, disse a faxineira querendo brincar com um assunto que para mim era mortal. “Leve esse sanduíche daqui... Não lhe pedi nada!”. Quando a faxineira partiu com o pratinho envolto por um papel aluminizado, eu cometi uma atrocidade que somente um demente cometeria contra um reles envelope de carta. Rasguei com imenso ódio o envelope. Fazia, neste ato, remelexos de loucuras com os lábios em movimento repetitivo, dado que me afogava na cólera. Saibam estes pormenores. O combustível que me açoitava em chamas incendiaria uma floresta inteira. Revejo o trajeto fatídico da faxineira para me entregar o envelope e levar de volta o sanduíche de presunto intocado. Logo após, com aquela carta na mão, fazia-a girar em movimentos concêntricos. Queria começar a ler dos pés para a cabeça. De trás para frente. Procurava, com este afã, pelo nome de Dona Glorinha o qual acabava por encontrar sendo descrita apenas com a letra G, grafada ao modo de um rabisco, em maiúscula: “Atento homem, pois a G está se entretendo com o rapaz do andar de baixo”, “Fica esperto chifrudo, hoje eu vi a G beijando a boca de um moreno forte e atlético na praia”, “Onde você está com a cabeça que ainda não mandou G para o inferno?”, “G foi vista no final da tarde de ontem rodando a bolsa na avenida. Você sabia que nas horas incertas G se vende como uma prostituta?”. Coisas disparatadas dessa ordem. Questões deprimentes que me tornavam circunspeto, afrontado, indignado mesmo. Tantas foram essas cartas anônimas que deixei de me portar como o ser poético e distraído que sempre fora. Até que. Isso eu vi com meus próprios olhos. Vinha eu de mais uma seção de terapia com a Dra. Dalmácia, quando vi Dona Glorinha vindo da calçada para a rua. Linda e feminina dentro de um vestido branco quase transparente, ela segurava uma rosa vermelha e fazia sinal—com a própria rosa que agitava ao ar—para um táxi que passava. Ainda há pouco Dra. Dalmácia me afirmara que havia lido numa das epístolas de Freud que o momento de tomarmos uma importante decisão poderia surgir com um assovio fino e longo que se faria ouvir prontamente. Afirmo que minha psicóloga poderia agora divulgar este fato terapêutico como confirmado. Ouvi o tal assovio premonitório e tratei de apanhar o táxi que surgiu logo após ela haver entrado e partido no outro veículo: “siga aquele táxi”, disse eu ao motorista que riu e confessou se sentir figurante de um filme de ação. Hoje são passados alguns meses que este fato ocorreu. Mas lembro-me claramente das escadarias que Dona Glorinha subiu, tendo um homem loiro no alto desse lance de escadas a esperar por ela. Eles se beijaram apaixonados, de língua, longamente. Nada de ordinário me assaltou ao ver minha esposa nos braços daquele rufião. Um desfile de fatos insólitos apenas. Relembro somente isto. Mãos que me alcançam diariamente para um relato que conste como definitivo nos autos da defesa. Minha saúde emocional se tornou frágil e desmorona no vazio por qualquer sugestão de lembrança. Não me lembro mesmo do que ocorreu a seguir. O assovio premonitório eu o ouço ainda. Ele surge como um álibi, embora de modo vago, quando o descrevo nas visitas de orientadores penitenciários, assistentes sociais, terapeutas do Estado, advogados curiosos e de outros profissionais correlatos. Entretanto, Digníssimo Dr. Juiz, tudo que me lembro daquele dia—e note que estou absolutamente convicto disto—é que não causei nenhum mal à Dona Glorinha. Repito que não lhe infringi nenhum dano físico. Isto foi de grande valia para mim, já que ao final de tudo eu me tornei um homem modificado. Devo esta mudança a ela. Foi Dona Glorinha quem me modificou para melhor, muito embora ela jamais chegasse a tomar conhecimento disto.


Beto Palaio

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013




Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa. Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável por sobre o piso duro das calçadas. 

SÚPLICA

Um perfume inenarrável. Folhas antigas mortas pisadas por folhas recentemente dispersas. Os passos beiraram o calçadão da praça. Filetes de areia dançavam ao longo de um beiçal de gramas protegidas por lanços de ferro. Numa dessas cidades que amanhecem desertas. Um embaraço acenou desde a rua da praia. Inexistente pensar em acaso. Uma nudez aflita pedia socorro. A rua principal era um traço borrado de chuva. Um conjunto de vozes partia da igreja e atingia o lajeado da calçada fronteiriça. Eles, os cantores do ensaio, estavam usando uma arma muito antiga e possivelmente necessária: a felicidade do entoar natalino. Antigo altar de sacrifício religiosos. Isto o que a velha fachada carcomida da igreja matriz lhe induzia a pensar. Como colmos de bambu por seu interior vazio. Uma religião apenas mantida pela cegueira de asseclas e centuriões deslavados.  Embora ele apreciasse entrar nesses vetustos templos para apreciar a arte ali guarnecida. Eram feitos por pintores bem dotados, antes da chegada da fotografia. Isto lhe acalmava a ira comunista de eliminar a religião dos fatos apenas históricos. Com estes pensamentos ainda lhe arrefecendo. Ele quase esquece que está ali para seguir sua mulher. Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa. Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável por sobre o piso duro das calçadas. Em outras palavras. Ele está descalço. E segue sua mulher que se afasta rapidamente. Qual sombra dele mesmo. Ela passa defronte ao maciço edifício da Biblioteca Nacional. Dobra a Carioca. Sobe a Frei Caneca. "Querida, pare!", ele gritou em desespero. Mas ela não o ouviu e continuou andando apressada. Ora no canteiro do centro da Avenida Presidente Vargas. Ora no calçadão da Rio Branco. Ele desistiu de gritar e apenas a seguia, veladamente. Como um detetive em busca de fatos para preencher relatórios. Com a busca já encerrada. Ele a alcança no Largo do Rosário: "Meu amor, agora vamos conversar?". Era a súplica que ele dirigia à esposa. Mas quando a moça se livra de seus braços ele vê que seguiu a mulher errada. Aquela moça ainda lhe olha com ranços de ódio, mas ele lhe pede desculpas: "desculpe-me, pensei que seguia a minha esposa". Depois se afastou dali. Entrando rapidamente na Estação Cinelândia do Metrô. Já dentro da composição ele só fica pensando no seu destino: "São Francisco Xavier, São Francisco Xavier, São Francisco Xavier...". Depois ele adormece e alguém o acorda no final da linha: "Senhor, já chegamos à Estação Saens Peña". Ele toma um susto. Estivera dormindo e sonhando desde a Estação Botafogo. Não se lembrava o que exatamente estivera fazendo em Botafogo. Depois ele desce do vagão e sobe as escadarias da Estação Saens Peña. Apressadamente...

Beto Palaio

Desenho de Max Klinger, 1881.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013




PITCHULA NO QUARTO 443

Estamos todos conscientes das altas formas angulares que se consorciam na arquitetura de um hotel cinco estrelas. Os longos corredores criam labirintos apenas amenizados pela presença de rubros tapetes que se alongam de uma fileira de quartos para outras. O pastor Nelionelson, com o mescalito no bolso, caminha determinado, indo ao encontro de Fragata, a caminhar silenciosamente sobre tapete felpudos, cercado de meias-luzes por todos os lados. Somente um brilho de obscura reverberação laranja parece seguir, às abóbadas, os que se dispõe a encontrar seu quarto no Grande Hotel Calaveras. Um ar de sonho empesta o lugar, seu todo enluarado pelos candelabros frios, a fazer da busca pelo quarto 443 uma procura fora da realidade, com a chave na mão, já dando asas à uma imaginação sanguinolenta, onde um vampiro ou um lobisomem sugerem que estão nos seguindo. O pastor Nelionelson treme de pavor ao introduzir a chave onde a inscrição 443 combinou com o número 443 que estava inscrito, em bronze polido, à porta. Logo ao adentrar, entretanto, tudo lhe pareceu dejavú, com o seu nicho de descansos compartilhados, arrefecido pelo vapor vindo do banho, a mesmice em forma de parafernália kitsch: uma mesinha de saleta, donde espelhos refletem o recém-chegado pastor Nelionelson com camisa havaiana, o qual avista o pequeno Frigobar sendo ladeado por duas cadeiras estofadas. Neste quarto aconchegante rege a ambientação plena de uma cama com proporções escorregadiças—cetins e tal—encimadas por dois monturos donde se adivinha travesseiros. Afora os dispositivos elétricos de um inesgotável acender automático de luzes, sobrevive ali um ruído de água em fervura de jatos onde, após Nelionelson ultrapassar uma breve barreira de vapores, avista a sua linda Fragata dentro da Jacuzzi, meio pendente de lado, usando uma toalha de banho como travesseiro, dormitando em plena ducha.

- Fragata, meu amor, acorde, chegou nossa hora...

Fragata Violeta despertou com uma orquestra de sorrisos para seu amado...

- Ah, meu Nelionelson querido... Finalmente poderemos brincar um pouco, fazer amor longamente, e depois dormir...

- Sim, mas a missão...

- Que missão, amor?

- Tem razão, Fragata, a missão que fique para depois...

Isto disse Nelionelson já retirando as roupas e se ajeitando, algo pássaro no ninho, na Jacuzzi com sua esfuziante Fragata...

- Acorda amor, eu tive um pesadelo agora, sonhei que tinha gente lá fora, batendo na porta de entrada, que aflição!...

Já era de manhã no quarto 443. E realmente alguém batia à porta. O pastor Nelionelson, incentivado por Fragata, se envolve em um dos lençóis para ver quem bate, tão cedo, à porta do dormitório. Ali ele vê um dos serviçais do Grande Hotel Calaveras, o qual dizia se chamar Don Genaro, e apresentava-se num apertado uniforme azul escuro, tal um militar, dado a ombreira conter ornamentos de estampa, em ofício de mensageiro do hotel, embora suas feições de índio do Arizona traíssem completamente aquela função. Nelioneloson vê o carrinho com iguarias para o desjejum e pede para Don Genaro entrar, enquanto corre para a cama, ainda envolto em lençóis, para se aninhar ali junto com Fragata Violeta. Don Genaro, a bem da verdade, encontra os dois pombinhos ainda na cama. Com o propósito universal que somente a chama da ternura possibilita, dando panos ao imaginário, Don Genaro apreciava ali, num jardim de lençóis amarfanhados, duas rosas enlaçadas, a enfeitar o mesmo ramo, juntos, a corsa e o gamo, a flor e o beija-flor, o arrebol e o pirilampo... O que mais poderíamos exigir do amor?

 - Chega de cama... Dormir cedo, levantar cedo... Este é o lema dos engajados na tarefa do porvir...

Isto disse calmamente o serviçal Don Genaro, como uma réplica branda e suave, a quebrar a hegemonia de uma eventual cólera ou furor, pois as palavras duras sempre exercitam a galhofa, o ressentimento e o rancor. Entretanto, mesmo os sonolentos amantes podiam antever naquelas frases recortadas uma ponta de acinte, algo um deboche ou uma fiúza qualquer deste quilate.


Beto Palaio


Arte: "Relatividade" de M. C. Escher

domingo, 6 de janeiro de 2013




MAKULELÊ DE CARTEIRA ASSINADA.


Makulelê logo voltou a falar desses tempos de aperreio juvenil em Altamira onde,  doze horas por dia, ele era mecânico de automóveis na oficina do Bira, também conhecida por trazer no seu letreiro, já um tanto gasto, enganchado no alto de uma velha paineira, uma placa carcomida pela chuva e o sol, onde mal se lia: Centro Automotivo Atlântida - Proprietário – Bira Abravanel.

- A oficina do Seu Abravanel foi o meu primeiro emprego com carteira de menor assinada... Motivo de orgulho...

- E depois?


- Depois eu fui para Rio Branco... Onde trabalhei num escritório de demarcações de terra, ativo desde o tempo do próprio Barão do Rio Branco... Depois na cidade de Tristão de Athaide, em Minas, onde fui funcionário de uma livraria espírita... Depois em Paulo Coelho, na Bahia, onde trabalhei numa casa de iniciação à umbanda... Depois fui peão numa fazenda de Ariano Suassuna, fazenda esta que já havia sido de Genolino Amado, que herdara de Joracy Camargo, que lhe foi repassada por Viriato Correia, que ganhou de Ramiz Galvão, o qual herdou de uma sesmaria de Carlos de Laet... Quase fico dono dessa fazenda... Mas era muita conversa por ali... Tanta que quase viro andejo atrás de uma invenção de cavaleiro andante... Depois da fazenda de Suassuna eu morei na cidade de Ribamar, no Maranhão, e trabalhava como fumigador de insetos, onde meu maior que-fazer foi debelar um ninho de marimbondos de fogo que se instalara dentro de um sarcófago do Museu do Homem do Maranhão... Ali assisti à Revolta dos Ribamares, onde doze pretendentes à donos do Estado do Maranhão foram rechaçados na justiça pelo simples fato de que, na prática, já estavam na posse de tudo... 

 - Mas estou ouvindo um chiado... Será que é do meu gravador?

- Não é não Dona Magaly... É o meu radinho de pilha... Ele só dá sinal de vida quando tem alguma notícia importante... Vou aumentar o volume desse danadinho...

Ao assombro da hora. Pelo rádio à pilha de Makulelê se ouvia o entoar do inicio da Voz do Brasil. Quando se acotovelava ali, numa entonação de Repórter Esso, uma nota de estranho cunho revolucionário de “atenção senhores ouvintes”... É que o Brasil acabava de se transformar novamente em Império das Sesmarias do Brasil. O radinho gritava hurras ao novo regime. Em tom de trio elétrico. Logo houve uma explicação cabal, um preâmbulo de catapulta, com uma mistura delirante entre absurdismo, subversão e uma impossível tentativa de combinar efervescência com flatulência, donde nós, brasileiramente, somos atirados novamente na desdita da sorte política, barco à deriva, representantes do povo brasileiro que somos ou seremos, agora estupefatos, pois vindos de Brasília, muito avessamente, através dos representantes legais reunidos em assembléia nacional constituinte, afoitos e festivos, para instituir um estado monárquico, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais encastelados e individuais minimizados, tal o destino de muitos antes da queda da Bastilha, com a liberdade de ir e vir muito pouco assegurada, e com a absoluta garantia de que tudo agora seria deveras ponte-pênsil e por demais avesso aos momentos vacilantes.

- Outra vez uma revolução? Mas não chega a de 64?


Beto Palaio

sábado, 5 de janeiro de 2013




ESTÓRIAS QUE SE CONTAM NO BEM-TE-VI.

O Makulelê se ajeita no propósito de espichar as estórias de beira-rio. Sua cabeça é uma moringa remelenta de tantas marés conversadeiras. Prenhes também de fatos deste nosso mundo, o dos atazanados, e também daquele outro, o mundo dos afamados. E lá vem ele. No seu catarro de contar. Esse caso do Mr. Lippy que desvira em menino Baguri, é afirmativamente um dos casos verídicos que o imenso rio dissimula. Na poesia do contador de estórias. Águas de versejar que versejem. Os fatos desfilam com repiques dos tambores do imaginar. Onde alguém cai num rio de boca sugadora. Ali há gatos que miam no ouvido do afogado. Esse zum na testa é sinal de morte certa. Nem de fato. Todas as mortes. Pois vem o talzinho do Baguri, o menino de guelras, e convence o possível afogado para juntos irem até uma rebimboca de lodo e miasmas. Sugere do semi-vivo seguir com ele até o mais fundo, do fundo do fundo, daquele rio. Lá estando, diante de qualquer falta de resistência, o menino se empesteia de se transformar no molusco diabo. E tal um polvo famélico, absorve o que restou do afogado, para ninguém mais saber de que semelhante criatura viveu de verdade aqui em cima. “No meio dos vivos de verdade”, como finaliza a estória o experimentado Makulelê.

- Ah, seu Makulelê... Não inventa estórias... Fica botando medo na cabeça dessas duas mocinhas tão lindas...

A Srta Mile, junto com Magaly, riram muito quando ouviram este achincalhe vindo de uma das arrumadeiras do navio. Uma mulher vistosa apelidada por Pata Loló, pois seus avultados de rebolados eram por demais avassaladores, indo lá e cá, como para imitar os passos que uma verdadeira patinha inventa para atazanar a cabeça lá dos patos. Entretanto Makulelê ainda tenta defender o patrimônio dos contadores de causos:

- Vai rebolar noutra freguesia, ô Pata Loló!

E lá se foi a Pata Loló, evidentemente rebolando ao máximo. Ladeando um azul-piscina de fazer chispas, em contraponto ao azul-turquesa da lateral do Bem-Te-Vi e o biquíni de uma turista, que vinha no sentido contrário, em arroxeado de azulão, tal louça portuguesa, para o muito azulejar, conhece pela labuta, o azulejista de mão cheia. E lá se foi a Pata Loló, a arrumadeira, ao macio de descobrir. Em sua conveniente aventura. Rebolando para uma dupla de moços gamados, estacionados na proa. Eles em cochicho. Num enlouquecido mirar aos seus guardados, lá dela. No batismo do fogo no rabo. Loló topa fazer uma sacanagem, tendo os dois na mesma trama. Na cama-beliche, logo-logo, um trio em cama-de-gato. Dois prá lá e uma prá cá. Um emplacado ménage a três, estofado no cafuzo, fique-fique nos aveludados fofos, em festas para a xãna de Pata Loló. Na pirraça de gostar de pica. A Pata Loló, agora é rumbeira do Cachenê, num moqueio de arrebentar saia justa, onde no ajuntado, essa Pata Loló acontece de ser, no entre dois, a rainha do remelexo. Para justificar o arrepio. Topou de ir com eles num quartinho. Onde se guarda baldes, vassouras, botijões enferrujados e onde, providencialmente, existe uma cama-beliche. Para uma arrumadeira de sarna para se coçar. A Pata Loló só fez brilhar de felicidade. Os dentes dos morenos mordiscando. Seus recheios de muito bom proveito. No balanço geral da lexicografia romântica. Ao destino solitário de marinheiro mercante. Não há recreio melhor que um camarim de arrumadeira.

Os moços estão fisgados no embarabaô, carne à ocultar carnes, no entra e sái, no xispar de beijos, muito embora, beleza não tem finalidade, como parente da gente, espelho com defeito, espuma de sabonete ressecado, ou sermão de padre despeitado, deixa a pé, o mirador, com a toada em passo de ema, pescando caramujinhos, os apaixonados no eterno ansiar, vendo sem ver, mirando só por mirar, voejar de colibris, de canto de olho, no espelho torto, afiançou ao bicho desejo, de rosto derretido, que o dia agora é de frevo, no Curupaiti, do embarabaô, alinhavados para muito amar, a pele banza, igual a da Loló, vontade limpinha de namorar, seus folguedos, Santo Antonio para ouvir missas, marulho do rio-mar, no assoalho do navio Bem-te-vi, o vendedor de refresco, batucando na lata, acolá os bem vindos, lindos de se ver, os nunca embarcados, macetando areias, uma centena invertida, dá o bicho na cabeça, um mocotó é joelhada, todo filó arrepia, depois do coió cercado, carnaval de farinhada no salão, confetes nos castos arremates, do embarabaô, eita osga de fisga, amor de perdição, caranguejo peixe é.


- Eita homens gostosos de brincar... Mas não falem por ai que me curtiram de montão... Pois o Capitão é muito severo com seus empregados... 


Beto Palaio


Arte: Wendy Sharpe

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013



TEMPO REI

Uma arrogância dura três anos,
Um cão sobrevive a três arrogâncias,
Um cavalo sobrevive a três cães,
Uma pessoa sobrevive a três cavalos,
Um tubarão sobrevive a três pessoas,
Um ganso selvagem sobrevive a três tubarões,
Um corvo sobrevive a três gansos selvagens,
Um cervo sobrevive a três corvos,
Uma pulga sobrevive a três cervos,
E uma Fênix sobrevive a três pulgas.

Beto Palaio

Um ditado Celta adaptado para os tempos de usura.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013



"Pretendi cantar mais alto que entre os verdes. E encantar. O meu sentir cansado. Naquele melhor sentir de quando era menina. Vontade de voltar às minhas fontes primeiras. De colocar meus mitos outra vez. Nos lugares antigos e sorrir". 



O DIA DE ENEIDA

“Nem que a vaca tussa!”... Isto decidiu Eneida sobre sua possível volta para os braços de JJ, o Caixeiro-Viajante... Ocorre que um dia é um pingo, uma semana é uma corredeira, um mês é um rio e um ano é um mar. Isto acarreta do tempo ser líquido e invisível ao emprestar minudências categóricas para fluir pelos beirais, calhas, meio- fios e boca-de-lobos. Num afogamento interminável. O tempo é aquele que submerge definitivamente os arrabaldes, as vilas e até megalópoles inteiras. Entretanto a cidade de Potirendaba, por esta época, no inicio dos anos trinta, nadava suas primeiras braçadas e constituía-se de germinar como um povoado paquiderme e pachorrento, ao vagar, se em dia de sol, a cuspir o pó da avenida principal não asfaltada e, se em dia de chuva, a enlamear tudo e todos que se atrevessem a pisar fora do meio-fio. Entretanto já havia em Potirendaba um cio de cidade que embarcava encantos e gramíneas. Havia, com este ínterim, gentes felizes passeando em sua única praça. Um footing sem pressa com o direito de um olhar mais demorado dos apaixonados em seus romances à distância. Os todos dali procuravam por algo novo que viesse por terra ou por ar. Um fato novo só chegava por estes rincões se assentado em dorso de mula ou vindo pela barcaça que fazia às vezes de uma balsa de traslado de um lado para outro do rio. Verdadeiramente. Uma pessoa de fora não se sentia em casa na Potirendaba dos anos 30. Acrescenta-se que a cidade não apresentava muita facilidade de acomodação para estrangeiros, sendo que, como exemplo distendido, um caixeiro-viajante não conseguiria sequer um hotel disponível. Neste vazio de ofertas. Para quem num repente surgiu na cidade carregando um baú de novidades. Sem travesseiro que o acomodasse, contudo. Isto JJ intuía de que a solução seria morar de favor na casa de algum morador um pouco mais dócil em relação à pessoas estranhas. Foi quando atravessou o Rio Macacos, vindo de Mirassolândia, e soube pelo barqueiro que sua filha Eneida era uma menina triste. Colaborava para isto sua solidão campestre. Suas feminilidades nebulosas em suas quatorze primaveras. Havia naquela doce menina. Encantamentos. Num existir poético. Ao resumido de. Seu seguir taciturno. Leituras de trechos como este de Hilda Hilst: “Entre cavalos e verdes pensei meu canto. Entre paredes, murais, lamentos, ais (Um cenário acanhado para o canto. É triste. Se o que dele se espera é até demais). Pretendi cantar mais alto que entre os verdes. E encantar. O meu sentir cansado. Naquele melhor sentir de quando era menina. Vontade de voltar às minhas fontes primeiras. De colocar meus mitos outra vez. Nos lugares antigos e sorrir. Como a ti te sorri, minha mãe, a vez primeira. Vontade de esquecer o que aprendi: Os castelos lendários são paisagens. Onde os homens se aquecem. Sós. Sumários. Porque da condição do homem, é o despojar-se”. Muito pelo contrário. Real como um pé que calçasse uma meia mais curta que outra. Ao se defrontar em sua casa com um homem mais velho até que seu pai. Tratando-a por “senhorita”. O JJ era mesmo especialmente sedutor. Trazia com esmero um bigode fino, alinhado acima dos lábios. E sorria por qualquer motivo. JJ chegou à Potirendaba num dia em que nuvens densas deslizavam rapidamente pelo céu da cidade. Aliás. Um prenúncio de tempestade das piores foi o que permitiu do baú de ofertas de JJ vir a ser o atrativo especial daquele final de tarde. Anoitecer no começo de abril. JJ foi acomodado dentro de um celeiro usado como oficina mecânica. Um celeiro em uma pequena cidade do interior. Está em ângulo inclinado. A parede de trás do celeiro avança para o fundo do palco e para a direita as grandes portas de entrada ficam nessa parede. Ao longo da parede da esquerda, uma bancada de trabalho com ferramentas de tratores espalhadas ao lado de algumas peças velhas, trapos e as tralhas todas de um mecânico. Uma prateleira acima da bancada onde há alicates, chaves de fenda, outras ferramentas. Na parede da esquerda, uma porta de tamanho normal que leva ao armazém da Central de Abastecimento, ao qual o celeiro está ligado. Uma rampa íngreme desce do batente dessa porta para o celeiro. Mais à esquerda, estendendo-se para a área externa, junto à parede, há pilhas de sacos de cimento. Na frente deles, vários barris novos de fertilizante. No fundo do celeiro, perto do centro, uma pequena estufa a lenha, agora acesa, brilhando vermelha. Sobre a bancada uma lâmpada pendurada. Há um grande macaco de mecânico no chão, vários barris de embalagem de pregos fazendo as vezes de bancos — dois junto à estufa. Um grande tambor de querosene apoiado em blocos, à direita, ao fundo. Perto dele, alguns galões espalhados. É um velho celeiro usado em parte como depósito, e principalmente como oficina mecânica de tratores e apetrechos. As vigas do teto têm uma cor quente de carvalho, sem colunas. As cores de madeira dominam a cena, bem como o cinza dos sacos de cimento. Ali, à um canto, reservadamente, JJ montou um pequeno catre onde pretendia dormir em sossego, pelo menos nesta primeira noite em Potirendaba, mas não foi isto o que aconteceu. Por um momento de imprecisão. JJ estava mesmo convencido que deveria dormir em cama fofa, na casa principal do barqueiro, o qual também mantinha esta oficina para concerto de tratores. Acontece que ele foi mordido por um olhar doce da filha do barqueiro assim que ele passou rente à casa. Foi quando ele parou e perguntou pelo nome da moça, que veio até o parapeito da janela e disse que se chamava Eneida. Depois JJ lhe estendeu a mão e cumprimentou-a todo sorrisos, no que foi retribuído prontamente, do mesmo modo, esfuziante. Agora JJ voltava àquela janela, era já prenuncio de madrugada. Ali ele bateu pausadamente, com os nós dos dedos, esperando pela resposta da moça. Eneida não tardou à abrir e ambos sussurraram algo muito determinante, pois JJ saltou para dentro daquele quarto e logo a janela fecharia por detrás deles. Agora, tantos anos depois, Eneida não quer mais a companhia de JJ. Ela está cansada e com quarenta e nove anos de idade. Ela se enfadou de aturar os passeios e manias de JJ. “Nem que a vaca tussa!”... Isto decidiu Eneida sobre sua possível volta para os braços de JJ, o Caixeiro-Viajante...


Beto Palaio


Pintura: Berthe Morisot