sábado, 4 de maio de 2013


AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

8


Cuore, cosa fai, che tutto solo te ne stai. 
O trem havia acabado de chegar. Um pequeno grupo encontrava-se na plataforma da Estação Santa Lucia. Ninguém mais além daquelas poucas pessoas à espera, assim como, ao redor dali, algo fantasmagórico permanecia, ao percorrer as ruas em passos brancos, a madrugada, fria, inconteste, mãe das neblinas, inconvencional, impenetrável, ao livre-arbítrio, porém, inútil, em sua decisão irrestrita, com seu nebuloso manto, de ocultar a realidade. Aos olhos da vida, entretanto, nada fica escondido inutilmente. “O mundo é uma biblioteca sem paredes”, isso disse Charles Farias, um turista refinado, culto, e amigo de Mandrake, que veio se despedir dele e de sua mulher Narda à estação. Ainda ontem o pequeno grupo de amigos que ora se reúne na Estação Santa Lucia, estava tomando parte da alegre festa do Carnaval de Veneza. Eis que. Entretanto. Curta é a jornada do artesanato delituoso. Durante a folia, Mandrake aproveita a presença de alguns policiais e se aproxima do gondoleiro Lubiski Morsini, aliás, R. M. Balarabechár, retira-lhe a máscara e chama os policiais: “prendam esse homem, ele é o responsável pelos crimes que ocorreram em Veneza!”. Há uma comoção geral ao redor, inclusive Lubiski Morsini, isto é, R. M. Balarabechár, tenta fugir, mas é impedido por um carabineiro um pouco mais valente. Depois desta discreta baderna, máscaras repostas, tudo ao redor dali—salas acarpetadas, corredores decorados, candelabros cintilantes, escadarias encastoadas, atracadouros febris, barcas no ir e vir, edifícios na penumbra, salgadas águas confinadas aos canais—tudo volta a respirar em quietude. Il sole alto splende già sulla città. Al buio tu non guarirai, non stare lì, dai retta a me. Já dentro do trem, Mandrake põe-se a resumir mentalmente sua passagem por Veneza. “Quando cheguei havia esse hotelzão de frente para a laguna. O porteiro desconhecia a velha etiqueta francesa de carregar malas. Tive de abordar o balcão de chek-in às voltas com minha velha dorzinha de coluna. E mais ainda. Sobre o balcão havia um desses sininhos consumidos pelo uso, típicos das porta rias de hotel, mas que ao soar ninguém atendia; para completar, a parede em frente ostentava uma placa desumana: "não temos TV nos quartos". O que dizer? Que a ardente Veneza está às moscas?” Di là dai vetri forse c'è, una per te, per te. Quando o trem parte da estação. Mandrake permite que Narda se ajeite ternamente, algo sonolenta, recostada ao seu ombro. “Tantas aventuras juntos”, ela suspira. Em sua feminilidade extravagante. Narda às vezes se torna uma especialista em discorrer futilidades. Observava as etiquetas sociais como se fossem normas litúrgicas. Passava horas dando detalhes de como dobrar um guardanapo à mesa. Além disto dizia coisas absurdas em reuniões importantíssimas, como aquela afirmação de que fazia torta de maçã com qualquer fruta que tivesse à mão: cerejas, damascos, groselhas ou amoras pretas. Perguntada se uma torta feita com outras frutas não deixaria de ser a verdadeira torta de maçã, ela respondia rindo, mas num tom lacônico: “e eu deixaria de fazer torta de maçãs somente pela falta das maçãs?”. No entanto, entre suas jocosas declarações surgia eventualmente uma jóia como esta: “Acho que Deus mora em Nova York... Numa esquina... Os Pretenders... Na outra... Ottis Redding... Na outra... O Buddy Holly... E por fim... Elvis Costello...”. Almeno guarda giù  che tra la gente che vedrai c'è sempre una, una che è come te... Mandrake é quem discorre, vendo a paisagem correr, partindo de Veneza, além das janelas do trem: “enquanto no hotel, eu aguardava pela chegada de Narda, ela mais uma vez se distraíra fazendo compras, atraída pelas vitrines da caríssima Veneza, inclusive, ela nunca escondeu que preferia estar em Miami a estar em Veneza. E gabava-se daquela cidade na Flórida: “tem muita coisa estranha por lá... Como aquela horrível estátua de um ônibus espacial feita de cimento, ou daquele show com uma baleia cantora, ou daquele imenso jacaré empalhado na entrada da biblioteca da cidade, mas em compensação tem gente de camisas e shorts coloridos e biquínis pouco convencionais”. Un viso anonimo che sà l'ingratitudine cos'è, e una parola troverà anche per te, per te... “No entanto não existe mulher mais leal no mundo. Companheira de todas as horas. Mantenedora de meus truques de mágica, os quais não revela nem para as amigas mais íntimas. Além disto, Narda é excepcionalmente corajosa. Ainda nesta semana, à caça de indícios de uma pista para decifrarmos os crimes que ocorreram em Veneza, fiquei com dó da coitadinha. Estávamos encurralados pela perseguição que nos infringiu um escroque da cidade, quando chegamos a um ponto sem saída. Não tive dúvidas, gritei para Narda: “pule no canal!”, e Narda saltou para as águas sujas de salinidades, musgos e tralhas. Pulei atrás dela e juntos ficamos no resguardo da soleira de uma ponte, ocultos sob ela até que o perigo passasse”. E allora te ne vai, non hai perduto niente ancora. A un'altra vita, un altro amore non dare mai. “Nesta noite chegamos à conclusão que não valia mais a pena ficar nesta cidade perfumada aos marasmos dos influxos e refluxos do Adriático. Em meio a esta sonolência chuvisquenta. Recebemos uma ligação de Lothar, nosso guarda-costas, sempre fiel e destemido. Ele viajara antes de nós para o Brasil, onde ali cuidaria do desembaraço de nosso arsenal de mágica na alfândega. Teremos um show de mágicas patrocinado pela Rede Globo, mas Veneza ainda nos empresta a preguiça de partir. Narda está mais aflita que eu para ir embora daqui: “vamos, amor, acho que não temos mais nada para fazer aqui”. Olho para ela um tanto sonolento, coloco os dedos entre as cavas laterais de meu impecável colete negro e fico duvidando que ela esteja mesmo com pressa: “mas acabamos de solucionar o caso das mortes em Veneza”. Ela me fitou sem piscar, riu e me pediu uma mágica para comemorarmos pelo quebra-cabeça que se tornara a investigação das mortes naquela cidade: “e então?”, Narda ficou me desafiando. Então apanhei minha cartola de mágico que estava ao pé da cama e com um assovio de surpresa retirei dela uma bela rosa vermelha. Ela não pediu por outra mágica, pois agora queria mesmo é se ocultar entre lençóis de seda: “me deixa retribuir pela rosa?”. Claro que deixei que ela retribuísse com seus carinhos. Foi assim que passamos nossa última noite naquele hotel em Veneza”. Il sole alto splende già, sul viso anonimo di chi, potrà rubarti un altro sì, un altro sì... Il mondo é lì. È lì....


Beto Palaio


Ultimo dos trechos que compõe este conto que faz parte do livro Pitchula e os Paranóias (em progresso) inspirado livremente na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Pintura de Canaletto.

sexta-feira, 3 de maio de 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

7


R. M. Balarabechár, o Taturana, era o chefe dos mendigos da região do Mercado Central, em Londres. Ocorre, entretanto, que na ocasião de sua prisão em Veneza, ele já havia perdido a cidadania inglesa, e ali prosperara sob a nacionalidade italiana. Tudo pelo fato de haver encontrado, num monturo de lixo, próximo à entrada principal da abadia de administração da Igreja de Westminster, uma pasta com cinco mil ações ao portador de uma empresa italiana de transportes coletivos, a Tramontana SPA.

- Magníficas são as criaturas que perdem os seus pertences mais nobres...

Falou R. M. Balarabechár, o Taturana, ao achar aquela pasta com milhares de ações ao portador, diante do que tratou de ficar de soslaio na região da abadia por mais um ou dois dias.

- Quem sabe eles se livram de mais ações ordinárias ao portador...

Mas essa remessa extra de ações ordinárias não veio e Balarabechár, o Taturana, tratou de ir, ainda naquela semana, ao consulado italiano reclamar do inverno de Londres e também de uma frieira que ele cultivava no entrededos de seu pé esquerdo. Algo bastante desusado para o expediente do cônsul italiano, na verdade um cônsul honorário e, portanto, não necessariamente italiano. Diga-se, en passant, que o cônsul havia nascido na região carvoeira da Cornualha, próximo ao istmo de Devon, e seu nome era Joseph Bédier III, bisneto do escritor cornualhês Joseph Bédier, autor de “O Romance da Guerra dos Cem Anos”, sucesso na Londres provinciana no início do século XX, principalmente na sua versão folhetinesca lançada por um jornal sem muita expressão na época, mas conhecido posteriormente como The Guardian.

- Pois não, Senhor... Sim, sim... Caríssimo Senhor Balarabechár... O que “nós” italianos poderemos fazer pelo senhor...

- “Vocês” italianos poderão arranjar uma acomodação decente para este pobre cidadão inglês, mas com vista a um passaporte permanente de dupla cidadania no país de “vocês”... Italianos...

- E o ponto seria?

Como R. M. Balarabechár, o Taturana, não entendeu exatamente o que o cônsul estava querendo dizer com “o ponto”, retrucou com a mesma pergunta:

- E o ponto seria?

- Meu caro cidadão inglês R. M. Balarabechár... Com “o ponto” eu quero dizer... Desculpe... Aceita chá?... Com açúcar?... Está bom assim?... Ótimo... Mas voltando ao assunto... Eu somente estava perguntando o motivo de o senhor vir a um consulado de outro país solicitar cidadania... O senhor é algum fugitivo da lei?... Não?... Mas desculpe... Não, não... Não me interprete mal, senhor Balarabechár... São os ossos do ofício... Perguntas pertinentes... Mas repito então... Qual é o ponto?

- Excelentíssimo Senhor Cônsul Joseph Bédier III... Venho neste solene momento pedir minha transferência para Veneza no sentido de que... Grato o chá estava ótimo... No sentido de que vou tomar posse como novo membro da diretoria de uma empresa de nome Tramontana SPA, por certo, como representante daquele país, o senhor deve conhecer esta empresa...

- Sim, claro... Mas, qual é o ponto?

- O ponto é que um cidadão inglês pode e deve tomar posse da diretoria de uma empresa estrangeira... Mesmo que essa empresa seja italiana... Se ele conseguir provar por “a” mais “b” que realmente é oficioso de tal função...

- Sim, claro... Mas, permita lhe perguntar pela sexta vez... Qual é realmente o ponto, Senhor Balarabechár?...

- O ponto... Sendo absolutamente prático... É que sou o legitimo proprietário de cinco mil ações da Tramontana SPA... Com isto me julgo no direito de cuidar dos meus interesses num país estranho... Mesmo que seja a Itália... O senhor não concorda?

- Claro... Agora sim... Chegamos ao ponto... Mas veja bem... Nada é simples como parece... Há um trâmite burocrático que... Vou ser mais latino do que  anglo-saxão agora... Se o senhor me permitir a franqueza... Mesmo para nós, italianos, porém sem abandonarmos a cidadania inglesa, o senhor me entende, não é?... Mesmo para nós levaria um bom tempo para provarmos certos detalhes legais...

Diante da tremenda burocracia apresentada pelo consulado italiano em Londres, não restou ao cidadão R. M Balarabechár, senão uma única saída: buscar no submundo dos falsários de documentos de Londres alguém que conseguisse uma maneira de transformá-lo num legitimo cidadão italiano.

Foi somente quando ele doou, ainda em Londres, uma centena daquelas ações para Isabella Deleon Contarini, esposa de um doge de Florenza, que conheceu através Virginie G., copeira de um nobre inglês, a qual dividira com ele alguns copos de cerveja maltada no balcão do Pub Fifty-Nine. Assim, com sua determinação de conseguir a cidadania italiana, ele acaba também por conhecer Ramus Sanford Jr., um iatista irlandês que era amigo de uma pessoa influente no setor documental dos arquivos da INRI, Ingerência Nacional e Regional de Informações. Essa pessoa era o despachadíssimo Dr. Demosthenis Lemuel, advogado da família Real e conselheiro de vários clubes de rugby da Inglaterra e Reino Unido.

- Agora sim, tenho a nacionalidade que preciso para tomar posse da empresa Tramontana SPA...

Isto disse R. M Balarabechár rasgando tudo o que possuía da antiga cidadania e dando boas vindas à nova documentação que o transformava inclusive em aposentado na função de gondoleiro em Veneza. É um recém empossado cidadão italiano que se apresenta nos balcões da British Airways para embarcar para Veneza:

- Sou Lubiski Morsini... Desculpe meu sotaque inglês pronunciado... Mas sou italiano desde criancinha... Sim, já tenho a carteira de vacinas e também o carimbo da alfândega inglesa... Grato... Espero mesmo fazer uma boa viagem até Veneza... Tenham todos uma boa tarde!


Beto Palaio

Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Imagem: Pintura de Annibale Carracci

quarta-feira, 1 de maio de 2013




AS MORTES DA MORTE EM VENEZA


6


Houve uma quinzena, ou mais, de interrupção naquela seqüência de mortes misteriosas. Foi nessa trégua que Otelo Carruters, tido pelas prostitutas locais como um mocetão insaciável. Na sua origem um tímido meeiro agrícola de Botorrita, Venezuela. Mas que no despertar do sexo pago se tornou ciumento até da própria sombra. Otelo é um apreciador de chope nas horas mais irregulares. Pesquisador de pedras preciosas. Mas, acima de tudo. Principalmente um observador dos mínimos gestos femininos de uma moça que vende flores na Praça de São Marcos. Ela é linda, sempre sorridente, habitando um espaço entre as lojas de conveniência e a praça, onde reina o grande Príncipe Rolex, o relógio da torre, o qual toca tons e semitons, invariavelmente, a cada meia hora. Otelo é recorrente tal o Príncipe Rolex, teimoso em sua paquera, afeito a qual, nunca desiste de algo que cobiça. Quando se trata de conquistar o coração feminino, esse Otelo Carruters age tal um mouro dentro das insistências de um apaixonado. Assim foi quando ele cismou de tomar posse dos afetos dessa moça vendedora de flores, independente dela ser cega de nascença. Muito embora não contivesse sua irritação quando soube dos particulares da moça das flores. Algo que. Para sustento de seus áis. Ele divide em mágoa com seu amigo de copo, o gondoleiro Lubiski Morsini. O qual disse para Carruters que a moça, de nome Jasmine, era protegida por um tal Padre Pey, um que ainda reza missas, mas somente na cidade de Toledo, Espanha. E que esse Padre Pey mora aqui num cubículo, junto com Jasmine, onde eles sempre deixam a carroça de flores estacionada bem em frente ao pórtico de entrada do velho edifício. Ainda mais, diz à Otelo, o seu amigo gondoleiro, que aquela moça, a Jasmine, é viúva do árabe Dalil D´Azizio. Um que apareceu morto em pleno canal, mas não agora em meio a essa série fatídica, isto coisa já de um ano. No dia seguinte à essa conversa com o gondoleiro Lubiski Morsini, Otelo Carruters foi até a banca de Jasmine comprar flores. Indignado estava pela bela moça ser assim jogada de um lado para o outro na mão dessa desditosa vida. Diante de Jasmine, fingindo que compraria uma rosa, Otelo quis passar-se por outro. Disse ele postando a voz e mentindo para Jasmine:

- Moça, sou o Padre Deveraux... De Toledo... Procuro aqui por um subalterno meu... Disseram-me que você... Tão linda e cativante assim... Pois bem... Disseram-me que você me ajudaria...

A moça Jasmine ficou apavorada. Disse que não sabia nada sobre esse subalterno dele, o Padre Pey...

- Mas, eu nem disse o nome dele ainda... Calma, menina... Nada acontecerá a ele... Isto é... Somente se...

- Se...

- Você deixar de viver em pecado com ele e concordar em dar outro rumo em sua vida... Isso urgentemente, diga-se...

- Ah... Padre Deveraux... Não penso em outra coisa desde que fiquei viúva de Dalil D´Azizio...

- Já soube de sua desdita...

- Mas o que farão com o Padre Pey?

- Há casos... Veja bem... Pode bem ser que o Padre Pey não passe por isso... Seria por demais desastroso para ele... Mas... Há casos que apenas se resolve com toda cólera advinda da milícia do Palácio Maior... Falo da correção ministrada pela polícia do primado regimental do Vaticano... Em outras palavras... Cadeia e chibata...

- Mas o Padre Pey é tão bonzinho... Precisa conhecê-lo melhor...

- Mas vive contigo... Minha bela flor... Em pecado absoluto... E você deve concordar muito bem com isto... Pois aceitou essa vida bandida à qual ele te relegou...

- Não, Padre Deveraux... Não é o que pensa... Não é mesmo...

- Como assim?

- Ele jamais encostaria um dedo em mim... Aliás... Padre Deveraux... Essa tem sido minha sina... Nunca fui experimentada enquanto mulher... Nem pelo meu ex-marido... O falecido Dalil D´Azizio...

- Que estória é esta de não ter sido experimentada?

- É que Dalil era deveras masculino... Um touro... Um homem que pesava perto de cem quilos... Distribuídos em um metro e oitenta e cinco... Pois no dia da nossa lua-de-mel... Aqui mesmo em Veneza... O senhor está me ouvindo?

- Sim, estou aqui ao seu lado...

- Pois nesse dia fatídico ele deixou-me no hotel e saiu para comprar cigarros... Somente quinze dias depois acharam seu corpo...

- Que trágico... Que martírio para você... Encantadora Jasmine... Então o Padre Pey não encomendou a entrega da casca sagrada?

- Que casca sagrada?

- Falo de sua virgindade... A igreja preza muito a virgindade numa donzela linda como você... Totalmente... Eu diria até... Devotadamente... Portanto um padre sabe bem do valor dessas janelinhas laqueadas para o pecado...

- Quanto ao Padre Pey... Posso segredar isto ao senhor... Sem que qualquer crime pese sobre ele... Pois... Revelarei definitivamente isto...

- Isto o que?... Que ele não passa de um canalha?

- Não... Não... Padre Deveraux... Perdoe o Padre Pey... Ele não é um criminoso como o senhor pensa...

- Mas vive com você em pecado...

- Não é bem assim...

- Me explique melhor, doce e gentil criatura...

- Padre Deveraux... Eu lhe revelarei que... O Padre Pey é meu legítimo irmão...

- Irmão?

- Sim... Nós somos de Toledo... Uma cidade onde ele seguia os mandamentos de Deus como nem um judeu devoto o faria...

- Mas fugiu de Toledo... Isso tem uma conotação absurdamente desfavorável para ele... Um homem de Deus vivendo praticamente como um eremita... Oculto numa viela de Veneza... Com sua adorável irmã cega... Algum motivo menos sagrado esse santo homem há de ocultar... Venha... Vamos até ele... Gostaria de resolver logo essa pendência... Como enviado da Sagrada Família Católica... Isto é tudo...

Assim os dois se dirigem para a viela onde o Padre Pey vive com sua irmã Jasmine... Ali chegando é Jasmine quem entra no pardieiro de casas para dar a notícia da prisão que o seu superior de Toledo vem lhe apresentar... Mal sabendo ela da farsa que lhe prega Otelo Carruters, o visionário apaixonado... Com a punição do irmão em mente, Jasmine entra no quarto de Padre Pey... Naquele momento ela está às lágrimas... O Padre é comunicado que seu superior está munido de uma carta de arresto para ele... E que não há motivos para pânico... Basta ele se entregar... Entretanto Padre Pey tem outras idéias a respeito... Motivado principalmente pelo segredo de haver desviado os fundos milionários da Santa Igreja de Toledo... Logo... Movido pelo anseio de evadir-se... Prepara rapidamente sua bagagem de mão e se despede de Jasmine, saindo por uma janela dos fundos, uma que se descortina para uma série passagens secretas e canais secundários, e assim arregimentado, Padre Pey não seria mais encontrado nem na Europa, nem na Ásia...

- Adeus, querida irmã...

Ela ainda tem tempo de ouvir a voz de seu irmão, como um murmúrio distante, tal as águas que correm de uma cisterna, enquanto os passos dele se afastam na distância...

- Volte Pey... Meu irmão... Não faça isto...

Na rua é uma Jasmine chorosa que vem avisar Otelo Carruters, aliás o homem tido como Padre Deveraux, da fuga de seu irmão... Este logo adentra na casa e conclui que doravante encontrar-se-á neste mundo como o legítimo benfeitor daquela virgenzinha desprotegida e fragilizada...

- Jasmine... Ele lhe oculta algo muito perigoso... Porque fugiria?... Aliás... Bom que te diga... Sou apenas um agente secreto a serviço do magnânimo Bispo de Toledo... Não passo de um simples investigador... Dei-lhe o nome de Padre Deveraux... Mas sou Otelo... Otelo Carruters... Pronto a desfazer esse mal entendido com seu irmão... Aliás... A investigação morre aqui... Não há motivos para perseguir este pobre homem... Agora antevejo a minha verdadeira obrigação... E quando puder transmitirei isto ao Bispo de Toledo... A minha obrigação agora é de prontamente lhe proteger... É assim que age a Igreja do Bispado de Toledo... Não desampara nenhum aflito... Nenhum...

- Obrigado então... Senhor...

- Otelo... Seu criado...

- Obrigado mesmo... Senhor Otelo... Que confusão o meu irmão criou para a Igreja, não é mesmo?... Meu Deus... E este desastrado caso acabou por envolvê-lo... Desculpe-me...

- Que é isto minha flor?... Que é isto?... Deixe-me enxugar suas lágrimas...

Memórias são feitas de areia. Quando estão úmidas pelas lágrimas não se desfazem, formam um gumo, uma contenção. De espinhos alertas. Inefáveis. Embarcados. Quando soltas as memórias voam, grão a grão, não só, elas evaporam. Nada as recuperam... Assim... Logo na noite seguinte, um ávido Otelo se muda para a casa de Jasmine... Onde tomam vinhos raros e se alegram mutuamente... Aos poucos Otelo ensina as nobres artes da concupiscência para Jasmine... Logo ela está nua... E feliz por estar sendo especialmente orientada para o sestro carnal por uma pessoa tão cordata e jovial como Otelo Carruters... Ele deita-se com ela numa canastra recoberta por almofadas... Otelo prontamente oferece sua mão para acariciar aquela esplêndida veludinha... Orientando naquela direção um possante mastro... A ruína das ruínas... Mas nada do desfalecimento pós-ejaculação... Pois Otelo não a penetra de todo... Apenas nas bordas flamejantes da corola de sua tímida flor... Depois lhe ensina um truque que disse haver aprendido em livros indianos... Coisa do tempo dele ser ainda um estudante... E proporciona para aquela voluptuosa cabacinha a sua língua louca... Jasmine delira... Crê que enxerga luzes... Pede por mais... Quer também lhe acariciar o mastruço... E foi assim, após rápida apresentação formal, que ela retribui à possante bimba, a sua ávida boca... Após o ato desbragado de se sorverem mutuamente... Otelo faz com que Jasmine se amolde por sobre seu mastro e a penetra de modo sutil, porém com o rompedor completamente embrenhado em suas belíssimas dobraduras carnais...

- Ai... Como dói...

- Quer então que eu pare?

- Claro que não, meu amor... Claro que não...


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Pintura: John William Godward

terça-feira, 30 de abril de 2013


Warhol-ian: The face of Marylin Monroe has been created in different colour combinations in a display which looks inspired by the legendary portrait series by Andy Warhol

AS MORTES DA MORTE EM VENEZA


5

Poucos dias após sua chegada em Veneza, Marietta Allred, uma turista de Nova York, foi encontrada morta. Ela flutuava perto das barcarolas azuis e amarelas, que são pintadas desta forma para uso exclusivo dos usuários do Hotel da Távola. Logo a estória de Marietta deverá ser avaliada nas minúcias pelas autoridades locais. Mas quem seria Marietta Allred? Desta vez o caso parecia mesmo inconcluso. Pois quase não deixava pistas significativas. Chegam a esta conclusão o detetive Mandrake, seu fiel assistente Lothar, o gigante africano, e sua mulher Narda. Para tanto, muitas perguntas foram feitas pelo trio no Hotel da Távola onde Marietta Allred esteve hospedada. Dali surgiu uma inocente testemunha chamada Rondha Turnstile, rotulada como moça tímida e chorona, que passou para as autoridades italianas um extenso relatório onde nada de importante se poderia aquilatar, muito ao contrário do que algumas testemunhas afirmavam—e Rhonda insistia bastante nesse ponto—de que entre elas duas jamais ocorrera qualquer estória de amor, nas versões aquilatadas, aqui e ali, como paixão tórrida, envolvente, ou algo parecido...

- Ah, senhores... Eu mal conhecia essa mulher... Tomamos o mesmo avião... Mas, e daí?

Volta-se a quadra do tempo. Agora em Nova York. Onde Marietta Allred encarna uma poetisa temporã, nascida em Nova Jersey, com lhufas de referência editorial, mas já acumulando uma “edição de autor”, impressa às próprias custas, com uma tiragem acanhada de mil exemplares. Edição a qual fica quase toda arquivada num dos recantos de seu apartamento-atelier. Marietta durante o dia trabalha na Sotheby´s, envolvida em tarefas burocráticas, e à noite ela pinta telinhas descompromissadas, apenas por hobby. Contudo ela demonstra alguma fixação nos trabalhos que produz, já que pinta somente os retratos por quem está apaixonada. Por isso seu apartamento está tomado, neste momento, por vários desenhos a carvão, algumas aquarelas soltas pelo chão, e quatro telas à óleo representando Rondha Turnstile, uma linda moça que se identifica como “uma profissional da atividade de scort girl”, ademais sendo, além disso, uma ferrenha alpinista social. Para Marietta Allred a sua fixação por esta moça se trata de uma paixão sem sentido já que, além de não ser correspondida pela musa Rondha Turnstile, a qual ainda acumula sérios problemas legais, inclusive chegando a responder por um processo de chantagem, oriundo de um dos cassinos de Nova Jersey. Ocorre que Rondha, junto com sua mãe Frincha Turnstile, uma trambiqueira no jogo de 21, se dispunham sempre a provar das suas recentes invenções para driblar as ações calculadas dos crupiês durante o jogo. No dia da prisão de ambas, durante uma dessas seções de descarte das cartas da banca, Frincha combinou para que Rondha ficasse pelada, ao lado do crupiê, enquanto ela trocava as cartas na mesa. As câmeras de segurança registraram o ato, e ambas foram detidas. Hoje somente a Rondha está respondendo ao processo, isto por desacato às autoridades e por insistir em se manter pelada durante todo ato de perseguição e arresto. Entretanto Marietta parecia mesmo disposta a esquecer certos episódios da vida de Rondha. Ela chegou a ser avisada de que Rondha Turnstile era uma vigarista e catimbeira da pior espécie. Uma pessoa que discretamente lhe alertou foi Binki Brando, uma aspirante a estrela de cinema e sobrinha-neta de Marlon Brando. Foi Binki quem lhe chamou atenção sobre certa peça de arte do apartamento de Marietta haver desaparecido. Esta peça era uma gravura do Andy Warhol, uma que exibe a cena mórbida de um Oldsmobile acidentado, sendo repetida, em verde e sépia, em seis situações idênticas.

- Marietta, essa gravura foi roubada por ela... Você não deveria deixar esse tipo de gente entrar no seu apartamento.

Mas Marietta refutava as evidências. Dizia que a gravura era realmente uma “bad art”, e que estava mesmo intencionada a se livrar daquela obra. Inclusive, ela falou para Binki, que seu amigo de copo e noitadas, o Estébam Macieira, filho de um vinhateiro do Chile, sempre que via a gravura lhe falava das más vibrações que aquele tipo de pintura trazia:

- Se liga Marietta, esse cadáver caindo da porta do Oldsmobile ficará suspenso no tempo para sempre... Ele não terá paz... Virá cobrar de você uma atitude reparadora...

Mas Marietta, apesar dos pedidos cordiais dos amigos, jamais dispensou ou deixou de pagar pelos serviços de scort girl à Rondha Turnstile. Corrigindo apenas a menção da palavra “serviços”, os quais eram utilizados somente com o propósito de Rondha posar nua para suas pinturas. Contudo, houve mais um episódio memorável entre elas. No qual, inclusive para fazer a vontade de sua mãe Frincha Turnstile, essa sua exemplar modelo Rondha, diga-se, um nu artístico realmente fora de série, acabou por convencer Marietta a pagar uma passagem aérea para todas irem juntas para Veneza. E foi o que Marietta concordou em fazer, juntou suas economias e comprou seis passagens ida-e-volta pela American Airlines para Veneza. Inclusive, um mês depois do pedido de Rondha, a sempre afável e dedicada artista plástica, numa das seções de pintura, deixou cair as passagens aéreas de propósito, para que Rondha as apanhasse. Mas Rondha lhe devolveu os bilhetes sem nenhum comentário, apesar de notar que as passagens eram para Veneza.

- Não vai me falar nada, Rondha?

- Sobre?

- Sobre as passagens para Veneza...

- E o que tenho com isso?

- Lembra-se que me pediu as passagens?

- Ah, sim... Mas notei que a viagem é para Veneza, no “Oriente Médio”... E a Veneza que gostaria de visitar, junto com mamãe, fica na Califórnia... Por causa de uns primos nossos que moram lá... Sabe?

Marietta Allred não se conformava com as idas e vindas sem sentido que lhe causava essa Rondha Turnstile... Inclusive sua burrice extrema realmente azucrinava o seu delicado ouvido, mas ela jamais ousava corrigir a sua modelo...

- Bom... Rondha... As passagens para Veneza... Na Itália... Europa... Sabe?... Já estão compradas... Você toparia ir?... Comprei uma passagem extra... Você até poderá, se quiser, levar sua mãe junto...

- Não sei de onde você tirou essa idéia... O que eu iria fazer com essa bêbada na Europa?

- Bom, foi apenas uma tentativa... Esquece isso, tá?

Mas no dia seguinte, por motivos alheios aos desejos reais daquela viagem, quem sabe até para tentar se esconder de alguma possível ação ilegal, Rondha apareceu no apartamento de Marietta. Ela surgiu sem marcar horário e, agindo de forma excêntrica, já foi entrando e tirando a roupa. Neste dia ela estava alucinada para exibir seu lindo corpinho. No entanto. Com calma Marietta a fez entender que não estava inspirada para a pintura, entretanto Rondha lhe disse que naquele dia não queira ser pintada e sim beijada e abusada. Com isto. Marietta tomou um susto. “O que?... Estou ouvindo direito?”. Quis refugar, porém ficou até sem ação. Pois uma Rondha altamente escolada em relacionamentos múltiplos vem e, com gritinhos voluptuosos, incentiva Marietta a se livrar de suas roupas. Ato contínuo Rondha iniciou aquela tímida pintora e poetisa na verdadeira delícia do sexo lésbico. Entretanto. Foi já no preâmbulo da transa que Rondha tocou no assunto de Veneza:

- Minha mãe acha que sou uma burra de não aceitar em fugir para Veneza com você...

- Fugir?

- Ora... Eu falei fugir?... Que idiota eu sou... Nem sei como você me atura...

Quinze dias depois as três estão ocupando seus lugares naquele 747 em direção à Itália. Durante o trajeto Frincha Turnstile bebia muito e passou a maior parte do tempo dormindo de boca aberta e roncando. Enquanto isto as duas trocavam carícias discretas e se beijavam, de quando em quando, trocando hálito e saliva com bastante vigor. Foi na trégua de uma dessas seções de carinhos que Marietta observou casualmente, na revista de bordo da American Airlines, uma pintura pop do artista Andy Warhol. Assim ela aproveita para tocar naquele assunto que visava, embora veladamente, saber de sua gravura desaparecida:

- Veja Rondha, essa tela pode chegar a valer um milhão de dólares... Embora uma gravura em papel de Andy Warhol não valha mais que dez mil dólares...

- Pôxa, eu vendi a “minha” por cento e oitenta dólares... Sempre sou roubada... Sempre...

Marietta Allred não disse nada, mesmo confirmando, em silêncio, que realmente fora roubada por ela. Acontece que, por estar apaixonada, Marietta apenas quis beijar novamente a boca de Rondha, a sua adorável e pecadora amante...

Agora, após a notícia do corpo de Marietta Allred haver sido encontrado num ambiente repleto de caramujos e lesmas marinhas, e como resumo de mais um caso de morte em Veneza, o visto de saída de muitos turistas foram pedidos com mais pressa que o habitual. Todos os “flutuadores”, que é como os nativos chamam os turistas, estavam querendo fugir de Veneza, já que havia naquela cidade mais que uma desconfiança de que um outro corpo apareceria, a qualquer momento, boiando num dos canais.


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Imagem: Escultura de David Mach (feitas de cabeça de fósforos) imitando as gravuras de Andy Warhol.

segunda-feira, 29 de abril de 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA 

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Desta vez o corpo era de um milionário coreano que, até a pouco, estivera entre amigos jantando à luz de velas numa cantina próximo à um dos canais. Não obstante o registro deste jantar foi possível dado ao específico detalhamento de cada um dos depoimentos colhidos dos amigos e parentes do falecido Henri Songmiaul. No que se relata, amiúde. A discriminação que assola o sufrágio às minorias não é privilégio da América. Ali em Veneza a discriminação é um prato que se serve quente. Onde haja exterioridade. Henri Songmiaul, milionário coreano e Badan Feldab, investidor árabe, estavam degustando pappardelle ao sugo de cinghiale num restaurante a céu aberto, local em que as mesas chegavam próximo à mureta de contenção do molhe. A travessa fumegante deixava com que o perfume da carne moída, da sálvia e do aspargo, aspergidos ao molho de tomate com cogumelos, invadisse todo o recinto. Aquele exagero de tradição culinária se atracando, ao caldo fumegante, com o talharim de banda larga. Henri e Badan mal continham a gula. E nem se apercebiam. Que, lá fora, Veneza derretia em malvas, como nas pinturas impressionistas de Claude Monet. Um decálogo de tons bluezins ora vestia o pôr-do-sol. Em silêncios siderais. Não muito longe, à leste, o astro-rei se deitava entre colinas distantes. Por todo vale desmaiava, entre sombras geladas, o calvário do dia. Nesta natureza-decomposta, a lua vem e flutua, como um barco de prata, tímida ainda, surgida num lago de nuvens salpicadas, algo pálido e longínquo, do sol já enterrado e morto. As floreiras naquele restaurante a céu aberto exalavam madressilvas e um toque longínquo de violino deixava tudo em suspenso, entre a poesia de um desejo personificar um outro, em contraponto, na morte universal, no trocar das correntes marinhas e no apoquentar de um coração pulsante. Entretanto, nem Henri Songmiaul, nem Badan Feldab estavam atentos ao que se passava ao redor. Pois se puseram a degustar, entre um gole e outro, o Brunello di Montalcino, uma safra especial 1977 do melhor tinto italiano. Neste clima especial. É Badan quem recomeça o assunto que tratavam já desde a tarde:

- Henri... Veja que o problema não é somente de Nova York ou Paris... Já que se focaliza em negros e, particularmente, em hispânicos... Veja o caso dos sete ativistas de extrema direita... Sim... Os que foram recentemente metralhados... Os direitos civis pesam em ganhos políticos recentes... Mas isto causa recuos econômicos nas minorias... Nós é que pagamos pelo assalto generalizado da plebe... Você não entende assim?...

- Quer mais vinho, Badan?

- Sim... Um pouco mais... Quanto à situação...

- Eu concordo... Até que os movimentos civis de extrema direita sejam resolvidos... Pelo menos em teoria... O problema moral e constitucional deve ser reconhecido pelo racismo assoberbado...

Nisto uniram-se à dupla, embora bastante atrasados, os outros convidados para o jantar. Estes se aproximam da mesa, já puxando suas respectivas cadeiras, são: Cornélia Gide, investidora em commodities e apreciadora do turfe. Daniel Boateng, editor do caderno Échecs do jornal “A Folha de Bruxelas” e Raphael Larsen, pintor dinamarquês, filho de John Larsen, proprietário da maior fábrica de sardinhas enlatadas dos paises escandinavos. Eles se puseram a reclamar, entre sorrisos e gargalhadas, que Henri e Badan não esperaram por eles, e o que é pior, já estavam atacando o prato principal...

- Nada disto... Nada disto... Este não é o prato principal... Depois teremos o assado de cordeiro... Claro... Não havíamos combinado isto?

Assim falou, também sorrindo, Henri Songmiaul que deu boas vindas a todos e, com um discreto sinal, chamou o garçom para que este trouxesse mais duas garrafas de Brunello di Montalcino. Bastante animado com a presença dos recém-chegados, Henri aproveitou para também ordenar, exclusivamente para eles, aquele aguçado pappardelle ao sugo de cinghiale, agora relegado a um reles prato de abertura...

- Vamos... Completou Badan... Se aproximem que estamos falando da situação atual de aparente comando das forças de direita...

- Ah... Não... Querido Badan... Com essa lua tão linda... Esse ar puramente veneziano... Ouça, ao longe... Até um violino nós temos... Então... Não percamos nada deste raro momento... Deixe que os pobres cuidem dos próprios pobres...

Isto disse Cornélia Gide, agora aparteada por Daniel Boateng:

- A pobreza está em xeque... Não há saída... Mas vou querer experimentar esse vinho... De que safra é?... O que?... Mil novecentos e setenta e sete?... Nossa!... É a melhor safra dos Montalcinos...

Este diálogo no restaurante é um dos bizarros tópicos inseridos na ficha criminal posteriormente elaborada para a triste ocorrência de Henri Songmiaul. Ele que fora encontrado boiando nas águas putrefatas de um canal secundário, num trecho em que a aduana empilhava alguns containers de depósito oficioso, alinhados numa amurada onde foram precariamente instaladas algumas manilhas para lancetarem um recesso de esgoto residencial, refluxos estes tratados em caráter de improviso, sobretudo arcaico, numa invenção milenar dos antigos romanos, que era a dispersão de dejetos sobre tanques fundeados em lastro de areia.

Haja paciência descritiva neste concatenamento de insinuações investigativas, para afinal nos alarmarmos mais uma vez, pois Henri Songmiaul não seria o último cadáver a ser encontrado boiando nessa temporada de inverno em Veneza...


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Foto: lauren374